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Sinopse

O detetive Espinosa e a policial Daia são designados para desvendar o assassinato de um figurão encontrado morto em seu carro num bairro nobre do Rio de Janeiro. Tudo se complica quando pessoas envolvidas começam a sumir.  

Crítica

O Silêncio da Chuva (2019) identifica muito rapidamente os cenários, os personagens e seu conflito principal. Fugindo aos tradicionais cartões postais do Rio de Janeiro, o diretor Daniel Filho trabalha com impressionante economia narrativa, traduzida na apresentação sem meias palavras. Diversos planos aéreos do centro da cidade insistem sobre a Avenida Rio Branco, o bairro da Lapa e a Estação Central, enquanto a chuva abundante, a noite profunda e a iluminação alaranjada, invariavelmente em contraluz (quem dera o centro do Rio fosse tão iluminado assim) nos convencem de que estamos num suspense sombrio. Os personagens relevantes são apresentados em rápida montagem paralela, para que o espectador identifique todas as peças desse tabuleiro: um empresário morto, a madame que o aguarda em casa, um investigador tímido, sua parceira engraçada para equilibrar a dupla, a bela secretária, um garoto de programa, o jovem malandro da favela. Malandros roubam, secretárias dormem com patrões, madames esbanjam, e assim por diante. Partindo do livro de Luiz Alfredo Garcia-Roza, o cineasta está longe de buscar a criatividade numa trama de estereótipos assumidos. Filho transparece as qualidades e os vícios da condução típica da telenovela, a saber, uma preocupação excessiva em agradar o espectador médio, a ponto de limitar a complexidade psicológica em nome da compreensão.

Ao menos, a produção se revela eficaz em termos de ritmo, cenário e trabalho do elenco. As empresas, casarões, casas de comunidades e prédios abandonados convencem enquanto panos de fundo tipicamente cariocas, enquanto o elenco traz nomes excelentes. Lázaro Ramos busca nuances ao policial estudioso, que carrega por todos os lados o livro A Verdade da Mentira; Mayana Neiva encara a armadilha da objetificação feminina com uma garra impressionante; Cláudia Abreu se delicia com a figura da esposa libertária e libertina; Otávio Müller compõe o sujeito reacionário e machista. Müller e Abreu se deliciam com as caricaturas do texto, oferecendo composições irônicas que se equilibram com as interpretações assumidamente humorísticas de Thalita Carauta (cuja destreza nos diálogos parece surpreender até os colegas de cena) e Pedro Nercessian. Nesta divisão em núcleos, tipicamente televisiva – o grupo rico contra o grupo pobre, o grupo dramático contra o grupo cômico -, cada ator cumpre o que o personagem lhe pede, sem romper barreiras. Há um senso de coesão dramatúrgica admirável: juntos, estes personagens se assemelham aos possíveis suspeitos de um romance de Agatha Christie, ou aos personagens do jogo Detetive. Eles se equivalem e possuem o mesmo peso – pelo menos, até descobrirmos o culpado.

Apesar dos lugares comuns do roteiro, alguns méritos são dignos de nota. Contrariamente à tentação das investigações espetaculares, onde exames de DNA e demais provas são obtidas em questão de segundos, O Silêncio da Chuva ressalta a burocracia das análises, a ineficiência de alguns setores e as disputas internas entre categorias de policiais. Não se trabalha apenas “em nome da verdade”: a investigação é compreendida enquanto profissão comum, cansativa como qualquer outra, embora os policiais não possuam uma vida familiar ou afetiva particularmente desenvolvida. Em paralelo, as mulheres sexualizadas possuem pleno controle de suas vidas afetivas, e jamais se limitam a vítimas ou algozes. Tanto a patroa (Cláudia Abreu) quanto a secretária (Mayana Neiva) ganham oportunidades de conflito que vão muito além de seus imaginários iniciais. Mesmo assim, estes embates ocorrem sem grande sutileza por parte dos diálogos: os investigadores comentam um com o outro informações de que ambos dispõem, apenas para informarem o espectador, já as conversas entre mulheres constituem o ápice do cinismo burguês da dramaturgia global. “Sabia que no início era até excitante ver como vocês se entendiam”?, afirma a mulher rica à amante do marido, revelando sua consciência do caso extraconjugal.

A direção possui altos e baixos. Alguns riscos compensam o investimento da direção: uma morte é revelada com o choque digno de um filme de terror, algo inesperado em produção tão comercial, ao passo que alguns planos longos no início, durante a descoberta do cadáver, permitem ao espectador adentrar a atmosfera do suspense sem rupturas. Entretanto, para cada sequência eficaz, outra incomoda pela simplificação tragicômica: vide a quantidade excessiva de drones, a luta mal filmada e editada com o michê dentro da mansão, uma cena pós-créditos constrangedora, ou ainda o assassinato decupado em planos dramáticos demais. Enquanto a dupla formada por Lázaro Ramos e Thalita Carauta provoca os melhores momentos do filme, com interação verossímil e carinho palpável entre os colegas, as cenas envolvendo os personagens de Bruno Gissoni e Anselmo Vasconcellos são afetadas em termos de mise en scène. Na hierarquia narrativa, à medida que os personagens se distanciam dos protagonistas termos de relevância narrativa e tempo de tela, eles se tornam mais exagerados, como se os policiais “reais” convivessem num mundo fabular. Em outras palavras, Espinosa e Dai não constituem vilões nem mocinhos, porém as figuras ao redor se limitam ao maniqueísmo padrão.

Em pleno ano de 2020, talvez não seja uma boa ideia investir numa visão tão condescendente da polícia carioca. Quando entram na favela, os protagonistas alertam meia dúzia de vezes antes de dispararem contra os moradores, e depois se preocupam com o trauma desta invasão nas crianças; quando uma mulher poderosa adormece sobre o sofá, o investigador a cobre gentilmente com um cobertor. Este cenário contemporâneo, marcado pelo envio de nudes via celular, overdoses de Viagra e atendimento de garotos de programa em domicílio ainda soa idealizado, facilitado para as necessidades narrativas. É difícil de acreditar que as ruas do centro do Rio de Janeiro tenham ficado vazias durante tanto tempo na hora do crime (mas os peritos dizem que havia “impressões digitais de metade do Rio de Janeiro” no carro), que dois personagens não tenham percebido a presença de um investigador a poucos metros do portão da casa de Beatriz, que o barulho estridente de uma cama sendo arrastada não tenha chegado aos ouvidos do sequestrador logo ao lado, e assim por diante. O Silêncio da Chuva demanda boa vontade do espectador para acatar com um sem-número de concessões à lógica e ao bom senso. No entanto, constitui uma busca saudável pelo filme médio, capaz de agradar suficientemente críticos e público amplo. O mercado audiovisual brasileiro precisa preencher a lacuna entre as produções “de arte”, radicais em termos de linguagem, e as comédias com humoristas fazendo careta no pôster – ambas importantes dentro de suas respectivas categorias, cabe lembrar. Mesmo assim, este suspense tenta reconciliar televisão e cinema, aproximando o audiovisual brasileiro das convenções do cinema de gênero, em resultado às vezes desengonçado, porém com ritmo eficaz e distribuição funcional de conflitos entre uma dúzia de personagens.

Filme visto no 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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