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Sinopse

A história de um grande rei e de seu aguerrido povo durante a era dos Três Reinos da China (220-280 DC). Intrigas palacianas, a luta das mulheres por lugares dignos nessa sociedade e um monarca violento e ambicioso.

Crítica

Em 2020, quando a pandemia de Covid-19 provocou o fechamento dos cinemas, algumas nações reagiram mais rapidamente do que outras ao avanço da doença. Contendo a contaminação em poucos meses, a China reabriu o circuito e superou os Estados Unidos no posto de maior mercado de cinema do mundo. O líder da bilheteria internacional neste ano foi o filme de guerra chinês The Eight Hundred (2020), com US$ 461 milhões. Em 2021, apesar da recuperação da economia norte-americana, os chineses ainda lideram com folga: a comédia Hi, Mom (2021) registra impressionantes US$ 822 milhões, enquanto a comédia de ação Detective Chinatown 3 (2021) aparece em segundo lugar, com US$ 686 milhões. O melhor resultado de Hollywood se encontra na terceira colocação: Velozes & Furiosos 9 (2021), com US$ 661 milhões. Um fator importante deve ser considerado diante destes números: no caso das obras chinesas, a receita foi obtida apenas dentro do país – as produções citadas sequer estrearam nos países vizinhos. Para Velozes & Furiosos 9, os Estados Unidos precisaram somar o faturamento local com aquele de 53 países para atingirem a arrecadação total. Com frequência, algum analista do mercado cinematográfico prevê que, caso a China consiga exportar seus filmes para mercados estrangeiros, estrangulará a indústria norte-americana com facilidade. Por que isso não aconteceu até agora?

A Sombra do Reino (2018), dirigido por Zhang Yimou, oferece um bom exemplo da dificuldade de exportação desta cinematografia. Embora os brasileiros estejam acostumados aos códigos de ação, aventura, dos épicos e romances norte-americanos, poucos possuem familiaridade com uma narrativa tão específica quanto aquela apresentada pelo épico asiático. A primeira hora de projeção se desenvolve numa velocidade de informações, encadeamento de imagens e códigos culturais capazes de deixar qualquer espectador brasileiro perdido. Um narrador descreve rapidamente a dinastia onde nos encontramos, quem são os principais personagens, quando duelaram, e qual território motivaria uma nova guerra. Dezenas de nomes são elencados, enquanto os diálogos se limitam a evocações poéticas, profecias (“Depois de sete dias de chuva, venceremos quando a água subir”) e explicações de um didatismo surpreendente. “Vocês me mantiveram preso em segredo”, afirma o refém aos sequestradores. Ora, por que ele precisaria informar seu algoz sobre algo que ambos sabem? “Nós, Yangs, somos conhecidos pela força e pela velocidade”, explica o general deste povo ao filho adulto, que estava ciente desta característica. “Na batalha de Mong, você matou mais de 20 homens e ficou em coma por três dias”, o comandante explica ao seu melhor lutador. O interlocutor havia se esquecido de suas próprias conquistas, por acaso?

Vistos pelos olhos ocidentais, estes diálogos parecem absurdos, quase risíveis – qualquer manual ocidental de roteiro alertaria contra esta prática. As ações, conflitos e reviravoltas tampouco se justificam longe do universo fabular: durante uma guerra de cítaras, o rei exige que a súdita toque o instrumento. Ela explica que está impedida de tocar, senão será obrigada a cortar um dedo. O marido desta oferece então uma mecha de seu cabelo, para compensar a promessa do dedo cortado. Nenhum destes preceitos é introduzido com antecedência, sendo apresentados conforme acontecem. O espectador deve investir tempo considerável tentando compreender quem são estas figuras nobres, por que o Sombra aceitou permanecer refém de um plano perverso, e a importância do terreno disputado para cada povo. O roteiro transborda de rituais, cerimônias, procedimentos de hierarquia e códigos de honra conhecidos por seus personagens e naturalizados pela direção. Assim, a primeira metade constitui a viagem a um cinema hermético, ora arrastado (os duelos de cítaras), ora veloz demais (a apresentação da irmã rebelde e seu papel no futuro do reino). Para o bem e para o mal, esta história jamais seria realizada por Hollywood desta maneira – a indústria chinesa desenvolveu uma linguagem e um ritmo particulares.

Quando a prometida guerra toma conta do filme, na segunda metade, A Sombra do Reino oferece a beleza esperada de uma produção caríssima (orçada em cerca de R$ 244 milhões) e de um diretor experiente no gênero. A invasão do território inimigo, utilizando armas acopladas às mãos e uma série de guarda-chuvas giratórios compostos por lâminas afiadas, permite ao cineasta construir ousadas cenas de ação. Parte das lutas recorre às tradicionais câmeras lentas, composições de orquestra e gotas de sangue e chuva voando pelos ares. No entanto, outra parte aposta numa coreografia intermediária entre dança e luta, quando os invasores aprendem a usar “movimentos femininos” para vencerem os oponentes. O sucesso, quem diria, provém da feminilidade contra a brutalidade dos oponentes, enquanto uma garotinha se impõe contra o homem que a humilhou. Ainda que a emancipação feminina ocupe um espaço secundário, ela irrompe neste percurso com orgulho. De resto, a direção de fotografia dessatura as imagens até se aproximarem do preto e branco, deixando a produção inteira com um teor metálico, acinzentado, adequado para ressaltar os guarda-chuvas-lâminas, as armaduras, capacetes e espadas. A trilha sonora exagera na catarse, as atuações possuem uma expressividade alguns graus acima dos nossos padrões, e as noções de sacrifício resultam opostas ao individualismo ocidental. Compreensível: estes não são os nossos padrões, justamente. O filme é fruto de uma cinematografia pouco acessível, e também de seu imaginário particular da magia e da história.

A presença de A Sombra do Reino no mercado brasileiro constitui uma oportunidade preciosa de travar contato com formas diferentes de contar histórias. Imagina o que aconteceria se tivéssemos acesso aos blockbusters indianos, russos, nigerianos, egípcios? O estranhamento diante da produção chinesa nos lembra de nossa colonização cultural, e de como são estreitos os códigos específicos da produção norte-americana. Para o espectador interessado sobretudo em grandiosas cenas de combate, receberá o esperado, contanto que aguarde com paciência pela chegada da guerra. Para todos os demais, cabe abrir a mentalidade a uma experiência incomum. O Sombra, jovem considerado sósia de seu mestre, possui traços muito distintos do comandante original; a luta-dança feminina surge de modo abrupto; transformações de personalidade no terço final poderiam ser consideradas inverossímeis. É impossível nos dissociar por completo da bagagem cultural ianque que formou nossos critérios a vida inteira. Entretanto, apreciando ou não a configuração narrativa do país distante, cabe admirar a maneira como desafia nosso entendimento do cinema comercial. O espectador precisa suspender mais do que a descrença diante da aventura fantástica: ele tem que ultrapassar seus preceitos morais e estéticos diante de tantos reis e generais de cabelos ao vento dentro de lugares fechados, tocando raivosamente a cítara cuja sonoridade representa uma questão de vida ou morte.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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