Crítica


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Sinopse

Mesmo que já tenham conseguido realizar o sonho da terra, as famílias que moram num assentamento agro-extrativista no Gerais mineiro se deparam com a falta de chuva e a monocultura de eucaliptos na região, elementos que dificultam a sua sobrevivência. Nesse cenário, enquanto os mais velhos tentam transmitir o conhecimento relativos à terra, os mais jovens vislumbram uma vida melhor na cidade grande.

Crítica

Talvez o termo mais apropriado para descrever este projeto seja a sobriedade. Não existe uma única cena mais forte para destoar do conjunto, uma única trilha sonora sentimental, nenhum momento mais explicativo ou didático na apresentação da comunidade que vive num assentamento em Minas Gerais, sofrendo com a seca. O diretor Maurício Rezende não demonstra piedade por essas pessoas, tampouco as converte em heróis, vítimas ou mártires de uma causa socioambiental. Quando os moradores se sentam numa cama e observam o horizonte, em silêncio, a câmera se paralisa e observa com eles. Sequizágua fornece um cinema do tempo, da contemplação, ou talvez seja melhor dizer, da desolação. Constata-se uma situação crônica, diante da qual o olhar da direção se isenta de procurar causas ou soluções: Rezende prefere que as imagens, com seu ritmo particular, se impregnem de significado por si próprias.

Visto que a seca não constitui um conflito em si – os personagens são impotentes contra ela -, o projeto busca outras fontes de atrito. A primeira delas é de ordem imagética: logo após o depoimento de um morador direto para a câmera, em plano longo e estático, outro depoimento é dado com o rosto fora de quadro, enquanto o personagem caminha pela região em busca de água. Enquanto a imagem de um culto cristão é oferecida “ao vivo”, com os moradores efetuando uma prece a Deus pela fertilidade da terra, outras pregações são incluídas em off, sem o som referente. As imagens sempre comentam umas às outras, em agenciamento espelhado ou circular: o belíssimo caminhar da família, toda vestida com camisetas em cores pastéis através do solo marrom seco, ecoa o retorno mais tarde da mãe, andando sozinha em sentido oposto. Existe um senso de completude das imagens dialogando consigo mesmas.

A segunda fonte de atrito provém da ficcionalização do dispositivo. Embora trabalhe na chave próxima ao documental, Sequizágua desenha uma narrativa cada vez mais controlada e roteirizada através do desaparecimento dos dois filhos pequenos da família de protagonistas. Neste momento, a câmera efetua planos e contraplanos, revela ao mesmo tempo a busca da irmã mais velha e o calvário dos meninos perdidos na floresta. O discurso sai então do olhar empático dos protagonistas para mergulhar num olhar onisciente e distanciado, exclusivo à ficção, capaz de filmar duas situações simultâneas em locais diferentes. Um simples pênalti, durante uma partida caseira de futebol, é filmado em planos subjetivos do goleiro e da jogadora. Rezende sofistica cada vez mais a sua linguagem para afastá-la da apreensão naturalista até chegar numa discreta ficção.

Ao mesmo tempo, o tom excessivamente contido da primeira metade permite enfim alguma descontração. O aspecto taciturno dos adultos, silenciosos diante das dores da terra e das dores do corpo, é substituído pelas piadas dos adolescentes na escola, por uma festa com música e comidas na região, e mesmo pela sugestão de um possível namoro entre dois adolescentes. A seca, tema central da metade inicial, converte-se em pano de fundo na outra metade, como se o diretor quisesse primeiro destrinchar o contexto socioeconômico para apenas então descobrir as pessoas que ali moram. Existe um senso quase determinista neste agenciamento do discurso, como se as pessoas só pudessem ser compreendidas enquanto fruto do local onde foram criadas. Enquanto a maioria dos filmes investigativos, de natureza política e social, parte do indivíduo para chegar à coletividade, este projeto efetua o caminho inverso, narrando o contexto mais amplo para então estudar as individualidades que o compõem.

Enquanto linguagem documental, Sequizágua soava belo, porém um tanto estático imageticamente, e conformista politicamente. Constatava-se a miséria, contentava-se com o retrato das dificuldades através de planos pouco emotivos. No entanto, conforme a ficção assume o controle, o roteiro permite que se discuta de maneira orgânica a difícil decisão entre ficar na região de onde se veio ou partir para a cidade grande (a bela despedida das amigas na estrada), sugerir o perigo do agronegócio predatório em relação à agricultura familiar, refletir sobre a ocupação das igrejas evangélicas em regiões desprivilegiadas. Rezende ainda mantém o naturalismo extremo e pouco intervencionista, valorizando os tempos mortos, a fala popular, o trabalho de som bruto, através do qual alguns diálogos sequer se tornam compreensíveis. O resultado será monótono ou indiferente demais para um público mais amplo, porém resgata uma noção de tempo dilatado e/ou perdido muito pertinente àquela realidade particular, e bem retratado pelas composições elegantes da direção.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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