Crítica


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Sinopse

Três países de língua portuguesa: Portugal, Cabo Verde e Brasil. Habitantes dessas nações evocam as saudades dos familiares que partiram no mar; dos avôs e avós escravizados; dos filhos presos e assassinados pela ditadura militar; da promessa de um futuro igualitário que nunca chegou.

Crítica

A saudade pode ser considerada um patrimônio da lusofonia. A língua portuguesa sempre se orgulhou de ser a única no mundo a possuir este termo sem tradução exata em línguas vizinhas. Brasileiros, portugueses e cabo-verdianos jamais poderiam reivindicar o monopólio do sentimento, acessível a todos, porém carregam os valores cultural e artístico decorrentes deste conceito em nosso imaginário. Produzimos inúmeras canções, poemas, pinturas, peças de teatro e filmes acerca da saudade — seja do que se viveu, do que se imaginou, e do que esperaria estar vivendo agora. Esta pluralidade norteia o documentário dirigido por Anna Azevedo, espécie de meditação filosófico-poética acerca dos traumas vividos e dos sonhos perdidos na história destes países fraturados por golpes, escravidão, colonização, fascismo. São diferentes as saudades em três continentes? Aquelas dos brancos, negros, indígenas? Aquelas de crianças e idosos, dos marujos que partem ao mar e dos familiares que ficam à espera? A diretora oferece um olhar humanista, de escopo vasto e generoso, às esperanças frustradas. “São quinhentos anos de uma promessa de futuro que nunca chegou”, afirma uma artista. O caráter agridoce se expande à obra inteira.

A estrutura do documentário abraça a premissa do fluxo, ao invés do atrito. Esqueça os letreiros explicativos, as indicações do nome de pessoas, as marcações de saltos temporais e geográficos. Testemunhos diretamente às câmeras e as narrações em off são igualmente desprezados pela autora, que prefere dissociar som e imagem enquanto se dedica à leveza de tecidos tremendo com o vento, barquinhos de papel navegando sobre as ondas, desenhos de crianças. A evocação dos crimes de Estado não busca provocar indignação, e sim reflexão. Nota-se o distanciamento do ponto de vista em relação às pessoas que conversam entre si. O dispositivo permanece à distância, evitando se intrometer nas confissões íntimas, embora esteja visível o suficiente para assumir sua posição e fugir ao voyeurismo. Saudade do Futuro (2021) adota a postura de cúmplice, cuidadoso para deixar que os personagens se expressem livremente. A narrativa desliza entre a Baía de Guanabara, os mares de Portugal e de Cabo Verde num simples corte de montagem, evitando precisar a época em que os diálogos se passam, ou quanto tempo se conviveu com tais personagens. A cineasta leva homens idosos, mulheres em luto, crianças de comunidades, músicos e escritores à areia das praias e às ondas do mar, para que suas falas sejam estética e simbolicamente impregnadas de nostalgia.

As interações despertam ótimos momentos, a exemplo das senhoras comparando os rituais de luto no século XX e no século XIX, com um palavreado precioso — embora sua prosa não tenha a intensão de se tornar arte, estas frases serviriam bem a um romance lírico. Valter Hugo Mãe e Martinho da Vila promovem falas descontraídas, portando diferentes compreensões do conceito de saudade. Percebe-se que os grupos foram estimulados a ponderar a respeito do tema, e na maioria dos casos, o resultado transparece um bem-vindo naturalismo. Entretanto, a fala de crianças pequenas a respeito da saudade soa artificial, pouco espontânea. Em alguns casos, as trocas verbais parecem ensaiadas, quando os indivíduos compartilham um com o outro experiências de que ambos compartilham — caso da cena com os artistas do slam. Nestes instantes, a reflexão acerca do racismo e do fracasso do ideal progressista de Brasil beira a retórica — as falas se aproximam da ficção devido ao controle rígido da mise en scène. Ao invés de apreender acontecimentos espontâneos, Azevedo prefere produzir os encontros desejados, levando seus personagens ao cenário de sua escolha. O mundo se adequa às necessidades da câmera, não o contrário.

Os recursos de linguagem provocam a impressão de devaneio: a insistência nas imagens de ondas, horizontes, mares, fotos e pássaros reforça a ruminação interna. A montagem brinca com sobreposições, câmeras lentas e o aspecto etéreo na duração das falas e das cenas: Azevedo prefere lançar bons questionamentos a fornecer respostas às suas amplas perguntas existenciais. É possível que o resultado seja considerado moroso demais pelo público amplo, graças à sucessão de diálogos que poderiam ser articulados em ordens totalmente distintas, sem prejuízo ao resultado. Nenhuma cena busca provocar um instante mais forte do que as anteriores, razão pela qual a curta narrativa se sustenta numa linearidade inabalável de cores, textura e tom das conversas. Ao menos, tal organização impede que se estabeleça uma hierarquia entre personagens, países e situações. Demonstra-se respeito equivalente às saudades da criança pelo cachorro morto, da mãe separada pelo filho executado na ditadura, e do marinheiro acostumado a passar longos meses em alto-mar. A vocação coral do roteiro se traduz numa vontade democrática de escutar todas as vozes e experiências em pé de igualdade, promovendo simbolicamente a democracia que as políticas dos três países nunca implementaram por completo.

Saudade do Futuro comprova o potencial político e criativo dos documentários autorais, respondendo às reiterações populares de que esta forma de linguagem estaria condicionada ao real, presa à necessidade inerente de explicar, à vocação de “contar e mostrar”. O filme passa longe do didatismo e do formato engessado ao qual se prendem tantas obras de concepção preguiçosa e apressada. É verdade que a produção carioca abre seu escopo até demais — apesar das menções repetidas à saudade, seu emprego se expande a contextos tão amplos que a montagem teima em costurá-los como parte de uma única discussão. Em paralelo, algumas figuras de lirismo têm sua força reduzida pela repetição: a composição das senhoras de preto diante do barco possui impressionante beleza, porém as novas digressões de indivíduos sentados sobre cangas na praia surtem efeito menor. De qualquer modo, a união de Brasil, Portugal e Cabo Verde através da montagem constitui uma atitude política notável em si própria. Navega-se entre dezenas de rostos e falas numa entrega leve, sem freios nem choques, confrontando-se à intimidade alheia com o respeito digno de uma escuta terapêutica. Azevedo coloca os três países no divã para começarem a se confrontar aos traumas de suas histórias de vida.

Filme visto online no 54º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em dezembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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