Crítica


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Sinopse

Richie Bravo é o astro de um balneário decadente, que atrai vários grupos de idosos no inverno. O cantor se apresenta com melodias românticas à la Elvis Presley durante o dia, e à noite, bebe até cair. A rotina do artista se transforma com a chegada de uma mulher dizendo ser sua filha, e exigindo reparação financeira.

Crítica

É preciso ter muita confiança na própria direção e no talento do intérprete principal para acreditar que uma única figura seja capaz de sustentar 120 minutos de filme. Richie Bravo (Michael Thomas) ocupa a totalidade das cenas deste longa-metragem, e o roteiro permite apenas personagens coadjuvantes dotados de alguma relação com o herói. A câmera acompanha o homem caminhando pelas ruas, entrando e saindo dos hotéis baratos onde se apresenta, dos bares de baixo nível e de sua casa. Ao invés de escolher esta história devido a alguma transformação excepcional na vida do músico, o ponto de vista se interessa ao sujeito pelo caráter de inércia: todos os dias do cantor decadente se assemelham, e poucos elementos permitem acreditar numa mudança. O ciclo diário, composto pelos pequenos shows para idosos, encontros fortuitos com mulheres e noites de embriaguez solitária, ocupa uma estrutura crônica. No entanto, o ator principal sustenta excepcionalmente bem esta figura, sem idealizá-lo, nem desculpá-lo. Thomas proporciona um corpo presente e desprovido de vaidades, que aparenta cantar a plenos pulmões sobre os palcos, amar com vigor os corpos com quem faz sexo, e acolher de maneira genuína os poucos aplausos das turistas que frequentam o balneário no inverno. O trabalho de entrega jamais se confunde com martírio: o ator possui a naturalidade de quem executa estas tarefas, de fato, há décadas.

Por isso, a linguagem de aparência documental implementada por Ulrich Seidl adapta-se bem à proposta. Ele pode sustentar longos planos-sequência dos números musicais, das sequências de caminhada no frio e da nudez na cama sem precisar recorrer a subterfúgios para atenuar a filmagem ou sugerir ações fora de quadro. A linguagem possui uma frontalidade e uma simplicidade ímpares: o mundo desejado pelo autor se encontra diante das câmeras, centralizado no enquadramento, controlando a ação. Os amigos, a filha, o pai idoso e o irmão limitam-se a orbitar em torno dele. Esqueça ações provocadoras no cômodo ao lado, ruídos estranhos no vizinho, movimentações de câmera inesperadas: o olhar existe apenas para Richie, seguindo-o em aparência de tempo real, num estilo direto para o qual os conflitos e os pequenos gestos cotidianos carregam importância equivalente. Há igual dedicação para iluminar e filmar um concerto do que para presenciar o banho do cantor corpulento, ou o convívio difícil com o pai senil. A câmera se insere nas frestas do mundo de modo que beira o voyeurismo, a intromissão perversa: o protagonista não adquire nenhum instante privado, a si próprio, sem que a imagem o acompanhe. Ao final, descobriremos inclusive o episódio traumático de seu primeiro orgasmo, de teor incestuoso. O homem de meia-idade está exposto em todas as suas vertentes, e a câmera trata de dissecá-lo neste percurso.

O retrato se potencializa pelo excelente trabalho de ambientação. A fotografia elege os dias mais frios, chuvosos e repletos de vento para expor Richie. Ele se arrasta pela neve, suja a beira das calças de areia, encarde o casaco e engordura os cabelos. Os espaços são muito bem decorados e filmados, sempre em profundidade de campo infinita para que o olhar do espectador tenha a liberdade de passear por cada uma das dezenas de objetos em cena. Os produtores se esforçaram para encontrar e decorar dúzias de cenários cafonas e coerentes com o universo do herói. Em cada um destes cômodos, nota-se uma infinidade de histórias incrustadas nos quadros da parede, nas caixas velhas ao fundo, nas estampas de onça e leopardo. Ninguém precisa comentar o passado de glória de Richie: basta observar a sala de estar incrivelmente kitsch, com um piano ao centro, e notar as reproduções em tamanho real do cantor pelas paredes. O homem se veste como um antigo Elvis Presley, cantando numa mistura de alemão e italiano permeada por termos em inglês. Ele tenta resgatar um sex appeal anacrônico, que poderia ser facilmente ridicularizado numa comédia. Ora, Seidl possui respeito por este homem que, se sustenta pensamentos conservadores e islamofóbicos, está longe da paixão nazista manifestada pelo pai. O cantor pertence a uma geração intermediária entre o progressismo da juventude atual e o conservadorismo de extrema-direita, lutando para resgatar uma fama que nunca lhe pertenceu de fato. 

Se existe um fator digno de questionamentos no longa-metragem, ele diz respeito à representação da alteridade. Uma faxineira negra e diversos imigrantes negros acumulam-se pelos cantos da imagem, sem voz nem subjetividade, apenas observando o personagem passar. Mesmo cobertos de neve, possuem uma aparência conformista e indistinta. Seidl faz questão de filmar indivíduos em situação de rua, contanto que incorporados à paisagem e relegados ao anonimato. Os colegas árabes, incluindo o namorado de Tessa (Tessa Göttlicher), compõem tipos sociais sem nome, e pronunciam pouquíssimas frases inaudíveis aos colegas. As minorias ocupam papel de ornamento: embora seja plausível que pertençam à paisagem social de Rimini, deveriam ter o mínimo de construção e autonomia. O cineasta já havia sido criticado por estes fatores em trabalhos precedentes, mas, alimentando a fama de provocador, repete a caracterização incômoda. Para cada cena belíssima (a mulher idosa abraçando a mãe após um encontro sexual fracassado) existe outra onde jovens árabes e famílias negras posam para a imagem, desempenhando papel nulo na narrativa. É possível que haja algum objetivo crítico por trás desta exposição desumanizada, porém não se esclarece a crítica à marginalidade. É possível que Seidl apenas reincida na segregação que pretende denunciar.

Entretanto, o show ainda pertence a Michael Thomas, que domina a narrativa ao longo de dezenas de canções. A certa altura, o roteiro simplesmente se recusa a avançar, girando em torno de novas cantorias pelos telhados, encontros frustrados com as mulheres e tentativas de reaproximação com a filha. O cineasta prefere o desgaste da repetição ao otimismo das evoluções fáceis. Para isso, dispõe de um arsenal imagético excepcional, muito bem controlado em termos de enquadramento, iluminação fria e direta, e uma montagem hábil nos saltos temporais. Há um refinamento impressionante de mise en scène, enquanto o conteúdo atenua a busca pelo choque e pelo escândalo, marcante nas obras precedentes do diretor. Para o bem ou para o mal, o sexo por dinheiro, a embriaguez e a islamofobia se recobrem de uma aparência melancólica, nostálgica, entristecida. O caráter afetuoso ajuda a desmistificar o tabu do sexo e da nudez, porém atenua a gravidade das afirmações preconceituosas do herói. Ora, o autor possui carinho irrestrito por Richie, seja nos melhores ou piores momentos. Tamanha adesão se reflete na impressão simultânea de lealdade e condescendência com este homem. Rimini constitui um excelente filme de personagem, embora seja o retrato falho de uma comunidade empobrecida. 

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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