Crítica


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Sinopse

O analista de dados Otto e a adolescente Mathilde sobrevivem a um grave acidente de trem na Dinamarca que provoca a morte de dezenas de pessoas - entre elas a mãe de Mathilde. A polícia considera o caso uma tragédia do acaso, mas Otto e Markus, militar e pai da garota sobrevivente, têm razões para acreditar que se trata de uma ação terrorista comandada por um grupo de extrema-direita. Markus decide se vingar do núcleo extremista com as próprias mãos.

Crítica

No cartaz, Mads Mikkelsen faz cara de durão enquanto segura um revólver e leva uma metralhadora nas costas. O título original sugere algo como Cavaleiros da Justiça, ao passo que o slogan afirma: “Alguém precisa pagar”. Graças à premissa relacionada a um estranho acidente de trem no qual a esposa de Markus (Mikkelsen) é morta, suspeita-se de um projeto de ação tradicional do tipo que Liam Neeson desempenharia no piloto automático. Personagens especializados em análise de dados apontam para falhas na tese do acidente, privilegiando a opção de um atentado terrorista. Caberá ao protagonista, um militar forte e destemido, desmontar a célula de extrema-direita com as próprias mãos. Os cinemas e as plataformas de streaming estão repletos de premissas do gênero – vide o recente Sem Remorso (2021), com Michael B. Jordan. No entanto, aos poucos o filme demonstra suas radicais diferenças com o modelo truculento de cinema de ação. Primeiro, pela desconstrução do heroísmo: Markus está longe da figura do herói de guerra, não possuindo qualquer feito notório que desperte simpatia por sua conduta. Ele adota uma atitude sanguinária em relação aos suspeitos do crime em cenas observadas com devido estranhamento pela direção. Percebe-se desde o início o olhar crítico ao extermínio puro e simples dos inimigos.

Segundo elemento de diferença, e mais importante, se encontra na dose generosa de humor. Enquanto Markus encarna a figura tradicional do cinema de ação e sua filha Mathilde (Andrea Heick Gadeberg) reflete o registro clássico do drama, os coadjuvantes constituem uma galeria improvável de homens paspalhões, fóbicos, antissociais e nerds. Os cientistas Otto (Nikolaj Lie Kaas) e Lennart (Lars Brygmann), o hacker Emmenthaler (Nicolas Bro), o youtuber com consciência social Sirius (Albert Rudbeck Lindhardt) e o garoto de programa ucraniano Bodashka (Gustav Lindh) agem de maneiras improváveis, dizem o que não deveriam e fingem ser outros personagens. O diretor Anders Thomas Jensen permite numerosas sequências de humor físico, com personagens se provocando, batendo e caindo no chão, além de piadas com a desconstrução da virilidade (os nerds adultos se comportam como garotos emasculados). “Você quer comer a minha bunda antes de deitar, para dormir melhor?”, oferece gentilmente Bodashka. O humor passa do absurdo ao provocador, do teor carinhoso ao ácido. O mais importante é perceber o afeto na abordagem do cineasta com estes personagens falhos, abraçando em igual medida o militar rude e seus amigos atrapalhados. Com calma, desenha um conceito de família formado por elos de afinidade ao invés de laços consanguíneos.

Em paralelo, a jornada despretensiosa começa a inserir uma discussão complexa: a diferença entre justiça e vingança. O título original e suas versões internacional e brasileira fazem referência ao primeiro termo; mas os diálogos mencionam com frequência o segundo. “Quero vingar a minha esposa”, dispara Markus. “Você ouve o som da vingança?”, pergunta outro personagem. Durante pelo menos metade da narrativa, o roteiro dá a impressão de misturar ambas as ideias, a exemplo de tantas produções hollywoodianas cujo prazer se encontra em presenciar os vilões (e dezenas de pessoas pelo caminho) morrerem em nome da expiação do trauma do herói. Ora, o filme esconde as suas cartas até confirmar que o abismo separando as duas noções representa um dos principais temas de reflexão. O protagonista embarca num revanchismo cego, cada vez mais punitivo, testando o pacto de identificação com o espectador: até que ponto somos capazes de defender o militar? Qual ato desumano provocaria nosso afastamento do herói? Jensen aumenta o tom da aventura, progressivamente, até a aguardada explosão.

O cineasta possui o desafio de equilibrar gêneros e registros dos personagens dentro de uma obra coesa. Mads Mikkelsen encarna um homem sem meias palavras, incapaz de empatia e excessivamente duro com a filha. Os embates com a adolescente em período de luto podem ser lidos como pérolas do humor sombrio. Já os coadjuvantes se encontram num filme à parte, uma comédia rasgada e assumida. Esteticamente, Loucos por Justiça mantém a seriedade através das luzes escuras, dos enquadramentos fixos e da violência explícita – é difícil rir diante dos tiros à queima-roupa na cabeça das vítimas. Caso o espectador retirasse o som da produção, teria a impressão de assistir a um típico suspense policial. Ora, o aspecto bufão dos diálogos, as trocas insanas entre Otto, Lennart e Emmenthaler (sobre terapia, cabos de conexão, pizza, pilates, crossfit, estatística e afins) e a trilha sonora lúdica, semelhante a um conto de fadas, atenuam a seriedade das imagens. Esse encontro funciona melhor em determinadas passagens: a decisão de Emmenthaler em participar nas matanças resulta numa ótima sequência, já a ingenuidade da filha quanto aos planos destes homens produz diálogos improváveis com o namorado. A facilidade na obtenção de informações a respeito dos terroristas, e de se aproximar dos homens perigosos constitui um aceno ao realismo fantástico. O projeto navega por tantas linguagens que deve despertar dúvidas no espectador quanto ao que está assistindo: essa cena deveria ser engraçada mesmo? Os cavaleiros correm risco real de morte?

A alternância de registros se traduz em algumas escolhas pouco verossímeis de roteiro, caso da descoberta do paradeiro dos heróis por meio de um vídeo pessoal na Internet e a incorporação de Bodashka ao bando. As sequências da revanche de Markus ocorrem de modo conveniente demais, sem a presença de vizinhos nem de pedestres na rua. Ressalvas à parte, estas são pequenas concessões ao realismo por parte de um projeto destinado a ressaltar a artificialidade das conveniências narrativas, sejam elas do gênero de ação, da nossa adesão ao herói brutamontes com arma na mão, e ao prazer da violência em geral. A satisfação esperada da vitória do protagonista se substitui a uma conclusão muito mais amarga. Jensen efetua a manobra arriscada de seduzir o público com uma oferta de escapismo tradicional, apenas para dar uma rasteira no espectador ao proporcionar um banquete de debates éticos e morais. Os fins justificam os meios? A dor de um indivíduo autoriza atos capazes de afetar uma sociedade inteira? O roteiro encontra brechas para discutir, ainda que superficialmente, os choques do ateísmo contra o cristianismo, do acaso contra o destino, e da violência praticada por "cidadãos de bem" contra aquela dos bandidos percebidos enquanto tais. Por estes motivos, compreende-se que atores do nível de Mads Mikkelsen e Nikolaj Lie Kaas, ambos comprometidos e bem dirigidos, tenham embarcado nesta aventura.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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