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Sinopse

Através das cartas trocadas por famílias operárias surge um mosaico da história política da França desde os anos 1950, partindo das origens comunistas até a relação com a imigração e a ascensão da extrema-direita.

Crítica

Retour à Reims (2021) constitui um raro caso de documentário onde a coletividade assume a posição de protagonista. Diferente de um filme coral, centrado em meia dúzia de personagens alternados, o projeto pensa a sociedade francesa como um todo. As dezenas de rostos em tela são desprovidas de nomes e origens, o que também vale para os autores das cartas lidas em off. Para uma obra sobre a construção da identidade nacional e da política francesa, o diretor Jean-Gabriel Périot dispensa as metonímias. Na posição de bom pesquisador de história e ciências sociais, ele abraça o tema de um ponto de vista externo, abrangente e ambicioso. O cineasta analisa, entre outros: a formação do proletariado pós Revolução Industrial, a disparidade nas relações de gênero dentro do mercado do trabalho, a relação com os imigrantes magrebinos e seus filhos, a decepção de muitos trabalhadores com os sindicatos e o Partido Comunista, as diferentes modalidades de luta trabalhista, a ascensão da extrema-direita entre as classes desprivilegiadas. O roteiro poderia mergulhar em um destes pontos, mas prefere entender de que maneira estão relacionados – melhor dizendo, é justamente na associação entre os temas que se encontra o interesse do autor.

O resultado poderia se assemelhar a uma palestra de sociologia, ou uma aula magna de história francesa do século XX. Felizmente, o diretor adota preceitos capazes de humanizar este percurso. Primeiro, introduz seu ponto de vista através de um alter-ego: a atriz Adèle Haenel, efetuando a narração em off. Fugindo ao procedimento repetitivo de comentar apenas aquilo que o espectador veria por si próprio, esta voz distanciada comenta, analisa, provoca, ironiza. Ela associa períodos distintos, supõe o estado de espírito de personagens, tenta compreender atitudes controversas dos comunistas (quando se posicionaram contra a imigração) e os operários que hoje militam pelas ideias da família Le Pen. A narradora se transforma não apenas em personagem, mas no principal fio condutor da adaptação do livro homônimo de Didier Eribon. Neste caso, o discurso oral precede a existência das imagens, razão pela qual o tom corriqueiro e desafetado da atriz dilui a impressão de mera denúncia política. Esta personagem ausente no enquadramento interage com as cenas na forma de uma conversa frutífera; antecipando, analisando ou anunciando o que estaria por vir. Ela entra e sai das cenas, interrompe sequências ou lança novas, cola-se aos fatos ou parte para elucubrações.

Segundo, Périot introduz cartas pessoais trocadas entre operários e seus familiares, a partir da década de 1950. Isso permite uma representação mais terna, menos professoral. Estes homens e mulheres comemoram as minúsculas casas recebidas pela empresa, sem banheiro nem quartos; a honra de trabalharem para uma grande indústria; a participação nas greves; a noção variável de patriotismo e do valor do Estado. Ausentes nas imagens, estas pessoas proporcionam um painel amplo e intercambiável, destituído de hierarquias – nenhuma fala é considerada mais importante do que outra. A horizontalidade desta estrutura provoca uma abordagem simultaneamente personalista (pois decorrente de cartas íntimas enviadas a maridos e filhos) e impessoal (já que os autores das cartas não são expostos, nem conduzem a história por si próprios). O ponto de vista tenta abarcar ao mesmo tempo um mosaico de conceitos amplos (a nação, a honra, a luta, a revolução, a direita, a esquerda) e um mostruário de casos específicos de trabalhadores cujos escritos são lidos em primeira pessoa. A fusão das linguagens provoca forte efeito, solicitando um espectador ativo capaz de interpretar as ambiguidades apresentadas pela narração.

Em paralelo, Retour à Reims demonstra uma extensa pesquisa em material de arquivo. Acostumado a trabalhar com estes recursos, o diretor combina filmes de ficção da primeira metade do século XX com reportagens da televisão da época, documentários engajados e filmagens próprias de protestos contemporâneos, em especial as manifestações dos coletes amarelos. Para a menção a uma mãe trabalhadora, encontra sequências históricas de mulheres nas linhas de produção das usinas. Para a descrição da pequena casa onde morava a família, resgata trechos de filmagens em Super 8 daqueles imóveis. Para a evocação de sentimentos e dúvidas, oferece associações livres com trechos de ficções. A obra “de montagem” nasce essencialmente na pós-produção, entre colagens de pelo menos 40 fontes distintas, oferecendo significados inéditos ao material: o som jamais foi condicionado àquelas imagens, enquanto as imagens nunca estiveram presas ao som. Inúmeras recombinações seriam possíveis, visto que os trechos se permitem ir e voltar no tempo, intercalando captação digital, em película e vídeo, tanto amadora quanto profissional. Há uma riqueza inestimável nesta associação, seja pela raridade, exemplaridade ou pela articulação dos trechos dentro da narrativa. O diretor ainda permite instantes melancólicos e sarcásticos, rompendo com a análise científica mais “dura”.

No entanto, nada prepara o espectador para a furiosa sequência de encerramento. Após um debate incisivo, mas ponderado (reconhecendo as falhas históricas da esquerda), Périot conclui a obra com um segmento operístico-punk-rock das manifestações. Se os primeiros “movimentos” (a estrutura se divide como uma partitura musical) eram voltados à reflexão racional, o desfecho abraça o fervor da política cotidiana. Uma trilha sonora intensa se sobrepõe a ruídos, falas, pessoas sangrando, chorando, de modo incômodo às ideias e aos sentidos. O autor se posiciona firmemente, elevando o tom da discussão ao confrontar uma França racista, misógina, xenofóbica e cada vez mais propensa ao populismo violento do Front National, o partido de extrema-direita liderado por Marine Le Pen. Partindo de uma dinâmica inicial comportada, o filme mergulha nos excessos, “sujando” propositadamente a imagem acadêmica do projeto. Esta sequência deve de conquistar de vez alguns espectadores, e provocar a repulsa de tantos outros. De qualquer maneira, trata-se de um posicionamento estético-político radical da parte do cineasta, conveniente ao termo abordado. Ele investiga o campo das ideias e os meandros da história para se voltar então a uma política movida por paixões. O comovente discurso de uma trabalhadora durante a manifestação (“Eu sou uma pessoa simples. Meus valores são minha força. Obrigado por me escutarem”) resume bem a mistura entre ternura e engajamento político, entre uma coletividade formada por indivíduos “nascidos livre e iguais em direitos” e um grupo composto por infinitas subjetividades, cujas diferenças compõem sua riqueza.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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