Crítica


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Sinopse

Luana Muniz é uma das transexuais mais famosas do Brasil. Atriz, intérprete de cabaré e orgulhosa profissional do sexo, ela é uma figura célebre da boemia carioca.

Crítica

Este documentário oferece um olhar impressionante a Luana Muniz, travesti e “trabalhadora do sexo desde os 11 anos de idade”, conforme lembra o curto letreiro inicial, única informação externa de toda a narrativa. Ao invés de se focarem em fatos passados, incluindo infância, juventude, aceitação da identidade de gênero etc., os diretores Carolina Monnerat Amorim e Theodore Collatos privilegiam o presente: a rotina na casa onde abriga outras travestis, a relação com a prostituição, o corpo, o dinheiro, a imagem pública. Além disso, Rainha da Lapa (2019) se revela uma obra curiosamente preocupada com o futuro. A protagonista questiona mais de uma vez o legado que deixará às outras travestis, as mudanças que terá trazido à profissão, a maneira como será lembrada pelos próximos. Ela pensa na situação das meninas que pretendem viajar a outras cidades, ou naquelas que sonham em morar na Europa, onde terão “esquina e casa” garantidas. O próprio filme se preocupa com a transmissão de gerações entre travestis, uma vez que o foco não se limita a Luana. Durante longas sequências, são as jovens moradoras da casa que dominam as imagens. Assim, o discurso permite ao espectador enxergar as semelhanças e diferenças, a relação materna e as novas inquietações das travestis mais novas.

Os diretores ocupam um espaço precioso dentro do albergue. A dupla se posiciona a meio-termo entre o distanciamento frio (típico do observador voyeur) e a proximidade sensacionalista (típica do fetiche e da intervenção). O ponto de vista, neste filme, se identifica com as travestis moradoras da casa. A câmera percorre os cômodos, se senta no sofá ao lado das meninas, acompanha as conversas, segue com atenção cada provocação, disputa ou brincadeira. O espectador é inserido dentro deste universo enquanto os cineastas deixam claro que não pertencem àquele mundo, mas foram bem acolhidos ali dentro, onde agem de maneira natural, tão afetuosa quanto respeitosa. Nenhum personagem parece se comportar de maneira diferente pela presença da câmera: as meninas se comunicam com um vocabulário cru, agressivo, detalhando o sexo praticado por dinheiro, as economias, as inúmeras agressões que sofreram e ainda sofrem nas ruas. A direção apreende um senso de espontaneidade riquíssimo dentro do documentário, sobretudo para um dispositivo onde a câmera se encontra tão próxima. Mesmo quando as personas aproveitam as luzes sobre si mesmas, elas o reconhecem e brincam com isso. Luana Muniz retira um grande leque, dizendo estar com calor, para se corrigir segundos depois: “Mentira, abri o leque de charme”.

“Amor de viado tá na beira do cu, amor de travesti tá na beira do bolso”. Frases como esta se multiplicam no retrato franco sobre consumo de drogas, cirurgias plásticas, estupro, facadas, morte. Há muito humor e risadas na convivência entre as personagens, em contraste com o pano de fundo brutal. A violência é retratada por pequenos símbolos: a boca de uma travesti cortada por agressões, as marcas nos seios de Luana, a estátua de uma santinha das prostitutas católicas, ou um pedaço de pizza dividido entre todas – e que provoca briga quando uma das moradoras não paga a sua parte. Neste universo, falar sobre sexo anal e esfaqueamento se torna tão natural quanto discutir a conta de luz e o conserto da televisão. Talvez a maior brutalidade se encontre na ausência de hierarquias entre atividades: acordar, comer, vender o corpo, brigar, voltar para casa. Uma garota liga para Luana, reclamando que um carro passou em cima de seu braço, e está sangrando muito. A protagonista pede a outra que resolva o problema, porque tem mais o que fazer. A história choca o espectador, mas não surpreende nenhuma moradora. Luana jamais ganha um retrato romantizado: ela é vista como uma diva de gestos ríspidos, fala assertiva, atitudes provocadoras. Diante deste contexto, o comportamento dela, e das outras trabalhadoras, se torna mais do que compreensível: estamos falando de sobrevivência.

Além do notável tratamento humano, Rainha da Lapa possui recursos técnicos e de linguagem refinados. Apesar do cenário caótico, com ruídos e falas sobrepostas, o som é muito bem captado e editado. Eventuais falas em off, transformando conversas de Luana em narrações, servem para atenuar o aspecto de urgência por meio da melancolia. O projeto revela o abismo existente entre o cinema de qualidade e o telejornalismo explorador (a famosa reportagem da Rede Globo, onde se revela o bordão “Travesti não é bagunça”, é inserida na narrativa), enquanto busca saídas poéticas capazes de equilibrar a dureza da vida das travestis. Após uma intensa briga entre moradoras, a montagem deixa longos segundos de silêncio antes de interromper a cena, como se quisesse digerir a gravidade da situação. Depois do retrato dos barulhos, luzes e cores da Lapa, volta-se ao céu silencioso do Rio de Janeiro no dia seguinte. Os enquadramentos são precisos, longos, dispostos a ouvir conversas inteiras, porém ágeis na tarefa de cortar para outros rostos, outros espaços, para um quarto vazio ou um gatinho descansando na cadeira. Nenhuma personagem é reduzida à condição de travesti ou de prostituta: as meninas falam de suas paixões, das saudades da família distante, das comidas que preferem. A identificação com essas personagens ocorre pela autoexposição franca, e ao mesmo tempo despreocupada, sem a vontade de chocar.

O efeito se torna ainda mais crepuscular diante do fato que Luana Muniz viria a falecer pouco tempo depois, em 2017. Sem saber, ela discorria o fim de sua vida, enquanto os diretores construíam um filme-testamento, repleto de felicidades tristes e pequenas conquistas suadas. Quando duas travestis discutem na casa, uma dela ostenta seu conforto financeiro: “Eu como a hora que quero, eu bebo a hora que quero, eu cheiro a hora que quero. Eu sou puta!”. O grande luxo, veja só, consiste em poder comer e beber quando quiser. O documentário jamais convida à piedade nem ao heroísmo, e sim ao olhar de igual para igual. Embora o público médio das salas de cinema constitua um grupo socioeconômico muito diferente daquele das prostitutas da Lapa, ele é levado a se identificar com as histórias de amores perdidos, sonhos desfeitos, conquistas pessoais. Uma das garotas filma com o celular as ruas cariocas, apresentando os amigos, tomando uma cerveja com clientes dos bares locais. Atenua-se então a hierarquia entre o diretor e o personagem filmado, entre elas e nós, entre as prostitutas e o público do cinema. Luana Muniz foi conhecida enquanto figura de exceção, porém o filme faz questão de retirá-la do exotismo para espelhá-la nas outras meninas, nos frequentadores da Lapa e no espectador que convive com as personagens, em cumplicidade, durante pouco mais de uma hora de duração.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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