Crítica
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Sinopse
Crítica
“Todo homem mata aquilo que ama”. Por esse mundo saturado de testosterona, desenhado com uma teatralidade sofisticada e suntuosa por Rainer Werner Fassbinder, ecoa o refrão da música melancólica e provocativa entoada por Lysiane (Jeanne Moreau), a única mulher determinante em Querelle, filme-testamento de um dos mais importantes e febris realizadores do cinema alemão. Amores e ódios se entremeiam nas relações igualmente sintetizadas na forma como os irmãos Querelle (Brad Davis) e Robert (Hanno Pöschl) se cumprimentam ao se reencontrar. O abraço fraterno contempla pequenas agressões físicas. Talvez pela insuportabilidade de se verem refletidos no outro, por conta da proximidade incômoda consigo frente à presença familiar, eles estão fadados a não encontrar sossego na ternura e tampouco na possibilidade de aniquilação. Permanecem ambos presos entre essas duas instâncias que se retroalimentam, incapazes de aquietar um estrépito existencial nutrido por forças supostamente antagônicas, mas insuspeitamente irmanadas. A realidade feérica passa pelo entendimento do falocêntrico enquanto componente centralizador.
Em Querelle, Fassbinder atinge um resultado bastante singular quanto à teatralidade aplicada à esfera cinematográfica. Há distanciamento do naturalismo, a celebração da representação. Mais importante do que circunstâncias, ações e reações, ao alemão parece essencial, antes de qualquer coisa, festejar a capacidade da fábula. Os marinheiros prestes a atracar no porto de Brest se vestem e se movem ressaltando o erotismo que media suas relações cotidianas. Paradoxalmente inertes num gigante de ferro cortando os mares que os aparta da civilização, eles mantêm vínculos capazes de os resgatar da solidão e conferem notas de paixão à labuta cotidiana. Quem apresenta isso ao espectador, desempenhando frequentemente uma função de observador privilegiado, é o tenente Seblon (Franco Nero), o oficial apaixonado pelo protagonista que grava em fitas cassete as agruras de suas crises amorosas e existenciais. Adicionando outra camada à narrativa que também presta um tributo à literatura, vide o modo como sublinha a força das palavras, há o narrador onisciente.
Fassbinder não faz em Querelle um brinde à sutileza, pelo contrário. Das docas ornamentadas com enormes pênis de concreto aos detalhes jateados nas portas de vidro do bar, tudo passa por essa lógica copiosa. O céu alaranjado é apenas uma confirmação dessa exaltação do artifício e, portanto, daquilo que se apresenta como artificial, numa trama que gradativamente vai tendo afrouxados quaisquer indícios do comezinho. À medida que Querelle adentra nesse cenário mediado por desejos imediatos, culpas permanentes e hedonismo misturado com dor, o filme perde contato com uma necessidade de aferrar-se a um crescendo, ao desenvolvimento de correlações ou de algo similar. Fassbinder torna menos divisíveis as fronteiras entre o que os personagens fazem e as possíveis consequências, pouco se importando com relações causais imediatas. É como se a progressão dramática clássica fosse esvanecendo num redemoinho em que a estética prevalece sobre a moral, no qual a agitação e a ausência de conexões facilmente reconhecíveis é um trunfo para adensar os contornos oníricos. Ao operário, ao marinheiro, em suma, ao subalterno pertencem potência, violência e sexo.
Querelle atrela a posição ativa numa relação sexual ao ato de amar. Para ele é perfeitamente possível extrair prazer da passividade, mas impensável penetrar alguém por quem não nutre sentimentos profundos. Essa noção expressa a importância de uma lógica de dominação e, de certo modo, remete à hierarquia. Mas, não há um esclarecimento cartesiano dessa maneira de entender-se numa dinâmica dual. Além de oferecer mais indagações que efetivamente indícios elucidativos, Rainer Werner Fassbinder coloca evidentemente boa parte de si nessa ciranda de figuras atravessadas pela capacidade avassaladora (por conseguinte potencialmente destrutiva) de sentimentos tão fortes quanto o desejo. Querelle é dedicado ao então falecido marroquino El Hedi Ben Salem – um dos protagonistas de O Medo Devora a Alma (1974) – grande amor do cineasta alemão, com quem ele manteve relacionamento intenso e conturbado. O brutal e definidor embate entre o querer e o repelir é a principal marca desse filme estilizado, ocasionalmente excessivo em sua fragmentação e em como vai se desmontando, mas que encanta pela beleza de uma construção visual acachapante e ao interligar umbilicalmente as impossibilidades e a impulsividade aqui próprias aos amantes que se entregam à volúpia.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 8 |
Daniel Oliveira | 8 |
Bianca Zasso | 8 |
Chico Fireman | 8 |
Alysson Oliveira | 8 |
MÉDIA | 8 |
Extremamente grato por ler um texto tão bem escrito e, apesar da brevidade, profundo e elucidativo. Gratidão, Marcelo