Crítica


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Sinopse

Uma observação sobre o estado atual do mundo, acompanhada por seis intelectuais e cientistas que refletem a respeito do presente e imaginam possibilidades para o futuro. O documentário segue os entrevistados nas profundezas do oceano, no topo do mundo e nos confins do espaço. Juntos, exploram a incrível capacidade da mente humana, uma cúpula econômica mundial, o legado da colonização e os sentimentos de um robô.

Crítica

Este documentário se debruça sobre reflexões tão complexas quanto amplas. Por que o ser humano destrói o planeta onde vive, e depreda a natureza essencial à sua existência? De que maneira se relaciona com a tecnologia, e se enxerga como parte de uma coletividade? Como se constrói a dicotomia “nós" versus “eles”? O que as principais nações do mundo têm feito para frear a destruição do meio ambiente, e o que cada indivíduo pode fazer para contribuir à preservação dos recursos? Haveria diversas maneiras de abordar estes tópicos, entre os exemplos concretos do impacto destas transformações na vida de cidadãos comuns ao estudo de uma doutrina ou ideologia específica. O diretor Marc Bauder opta pelo caminho pedagógico, convidando cientistas sociais, filósofos, astronautas e pesquisadores da vida marinha para discursarem sobre o atual estado das coisas. Eles sublinham a beleza infinita dos céus, a riqueza misteriosa na profundeza das águas, a desumanização derivada da robotização. Há perigo no horizonte, alertam todos. Caso alguém ainda não saiba, o planeta corre riscos, e a humanidade também.

Um primeiro questionamento face a essa abordagem diz respeito à obviedade de sua constatação. Ninguém ignora a importância dos alertas, nem a necessidade de continuar evocando as ameaças. No entanto, a discordância parte da didática adotada por este discurso. Todo mundo já ouviu, desde criança, mensagens a respeito da preciosidade das florestas, rios e animais. Isso não impede que estes indivíduos, uma vez crescidos, participem de atividades econômicas capazes de prejudicar a natureza e colocar a saúde dos indivíduos em risco. Acreditar que o mero lembrete basta por si próprio equivaleria a insistir no erro: já deveríamos ter percebido, a esta altura do jogo capitalista, que frases poéticas e imagens da Terra azul, vista no espaço, são insuficientes para sensibilizar o público e convertê-lo à causa desejada - do mesmo modo que imagens de pulmões necrosados no verso de pacotes de cigarro nunca dissuadiram um fumante sequer. A psicologia humana possui mecanismos complexos demais para o simples aconselhamento de especialistas. Na época anti-historicista e avessa à ciência (vide as fake news sobre vacinas espalhadas pelo próprio presidente), a voz destes pesquisadores carrega poder de persuasão limitado.

Quem Fomos (2021) evita interromper sua verborragia para efetuar perguntas fundamentais: que interesses sustentam a destruição do planeta? Talvez fosse produtivo confrontar o porta-voz da Monsanto a um ambientalista, ou escutar a voz do empresariado de indústrias poluentes tentando descartar as evidências do impacto nocivo de suas ações. Haveria muita divergência política inerentes ao tema, porém descartada pelo longa-metragem com medo de ferir sensibilidades e apontar dedos. A China e os Estados Unidos são mencionados discretamente na posição de agentes que descumprem tratados internacionais, ainda que o discurso se apresse em ressaltar que o problema se estende a todos os países. Com exceção da chanceler Angela Merkel, coberta de elogios por um filósofo, os demais presidentes, empresários, ministros e figuras de poder são preservados pelo discurso de natureza moral. Em paralelo, a população sofrendo diretamente as consequências dos atos mencionados resta em segundo plano: os 120 minutos são ocupados por intelectuais discorrendo a respeito de ideias grandiosas e válidas, mas abstratas. Teria sido essencial aproximar os conceitos macro de subjetividades específicas.

Além disso, a construção imagética proporcionada por Bauder se revela genérica, apesar do orçamento considerável da produção. Ele se contenta com as cabeças falantes intercaladas com imagens do espaço e do fundo do mar, no melhor estilo National Geographic, além de uma sucessão de palestras e seminários, quando os protagonistas expõem suas reflexões - e o filme, pelo menos, assume seu didatismo e rigidez. Nenhuma imagem possui interesse próprio pelo enquadramento, pela luz, pela representação inesperada de um tópico, pelas fricções de discurso provocadas na montagem. Trata-se do típico caso em que o tema se sobrepõe à forma, e a linguagem se contenta em abrir câmera às vozes alheias, sem oferecer a sua indagação própria. Incomodam os projetos nos quais o cinema se reduz a mero veículo de comunicação: o teor das falas poderia ser transposto a um livro, uma peça de teatro, um podcast, um manifesto ou um panfleto, sem prejuízo ao resultado. Entretanto, como era necessário rechear a projeção para que o espectador não se encontrasse diante de uma tela preta, fez-se cinema apesar do filme. Restam sobreposições óbvias entre som e imagem, esta última reverenciando e confirmando o teor evocado nas vozes. 

“Mas os personagens dizem coisas importantíssimas!”, poderiam argumentar alguns espectadores, que teriam toda a razão. A perspectiva sobre o colonialismo pelo acadêmico senegalês Felwine Sarr é provocadora e preciosa, assim como o debate filosófico de Janina Loha a respeito da essência humana e a abordagem tolerante do monge Matthieu Ricard no que diz respeito à contemporaneidade. No entanto, este mérito recai sobre os entrevistados, não sobre o filme. Seria conveniente e antiético para o cinema se contentar em oferecer o microfone a terceiros e usufruir do status e da potência alheia sem incorporar reflexões próprias via montagem, fotografia, e concepção estética em geral. A pretensa humildade de ceder o protagonismo e o controle narrativo a especialistas se traduz numa ausência de postura crítica necessária ao documentário e ao cinema político. Compreende-se, pela falta de posicionamento assertivo, que Bauder concorda com as teses de seus protagonistas, em contrapartida, existem discordâncias, precisões, confrontos dentro de grupos de valores semelhantes. Ele poderia ressaltar certas passagens em detrimento de outras, valorizar algumas reflexões enquanto diminui a importância das demais. Em outras palavras, poderia criar ritmo, volume, textura, e se relacionar com o material e o tema abordados, ao invés de projetá-los como a exposição de uma verdade desconhecida até então.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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