Crítica


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Sinopse

Um grupo de jovens lésbicas de São Paulo viaja a uma praia deserta para passar o Ano Novo. Lá, constroem um refúgio físico e emocional para seus corpos e afetos através da amizade e da música. Nesse ambiente seguro e de cuidados mútuos elas podem, enfim, relaxar.

Crítica

Desde os primeiros instantes deste curta-metragem, as protagonistas são identificadas como garotas lésbicas, conversando entre si sobre o preconceito e a desinformação de familiares a respeito da homossexualidade feminina. A diretora Cris Lyra poderia apresentar as personagens para só então sugerir sua sexualidade, mas faz questão de abordar de maneira frontal, e muito natural, a relação destas mulheres com seus corpos e seus desejos. Os diálogos transparecem uma fluidez típica da linguagem oral, como se nenhuma conversa tivesse sido roteirizada ou controlada: as personagens se expressam num bate-papo descompromissado, muito verossímil e pertinente ao contexto da viagem de Ano Novo.

Pelo despojamento, Quebramar dilui a linguagem documental dentro do procedimento fictício das conversas entre amigas. As protagonistas explicam a decisão de manterem os cabelos curtos, as escolhas de roupas, as violências físicas e psicológicas sofridas em suas vidas. Os episódios narrados nunca transformam o drama numa denúncia, preferindo manter a leveza e o humor: elas falam como combatentes, com o devido distanciamento, e sabendo que se comunicam com outras pessoas de vivência semelhante. Esta é a vantagem do dispositivo de “filme de férias” encontrado pela autora: ela coloca suas personagens num ambiente seguro onde este tipo de história pode ser enunciado sem o peso de um testemunho diretamente às câmeras.

Enquanto isso, a parte técnica do curta-metragem é deslumbrante. O trabalho em baixas luzes, dentro do ônibus, por exemplo, se revela primoroso, e a sucessão de fragmentos de seios, braços e pernas na praia, muito bem articulados pela montagem, cria composições ricas para a discussão sobre a autonomia dos corpos. Durante os diálogos perto do mar, o som das falas e os ruídos do vento e das ondas são perfeitamente captados e editados, de modo que nenhum se sobreponha ou atrapalhe o outro. Mesmo quando duas personagens estão caminhando distantes sobre a praia, escutamos suas conversas com a nitidez de uma fala próxima. Posto que o curta-metragem dedica uma atenção especial à música, composta e interpretada pelas amigas, as canções adquirem uma função importante, intradiegética, com atenção minuciosa dada à captação das falas e das melodias do grupo.

Por fim, Quebramar consegue conciliar o ativismo (encontrando importantes pontos de cruzamento entre as lutas das mulheres com as lutas negras, por exemplo) e o lirismo: o momento de carinho entre três amigas, quando cantam juntas durante um instante de angústia para uma delas, proporciona uma cena marcante. Estas jovens são apresentadas por sua sexualidade, mas não reduzidas às mesmas: elas também são artistas, são livres, são um grupo unido, são donas de si mesmas. Esta postura combina enfrentamento e afeto, política e poesia. Cris Lyra e a equipe inteiramente feminina do curta-metragem demonstram um controle de linguagem e um refinamento impressionantes, despertando curiosidade quanto aos seus próximos projetos.

Filme visto na 6ª Mostra de Cinema de Gostoso, em novembro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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