Crítica


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Sinopse

A fim de participar do festival musical da faculdade, a banda de Bruno precisa de um novo vocalista. Quando tudo parece perdido, Jeny surge para encontrar seu destino em meio às melodias gospel.

Crítica

O principal receio diante dos filmes cristãos recentes diz respeito ao proselitismo. A maioria das produções do gênero lançadas nos cinemas tem estabelecido uma comunicação muito particular com o espectador, tratando-o como aluno pouco apto ao aprendizado, a quem se precisa traduzir as lições de maneira agressiva e óbvia. Por trás da aparência de humildade, estes dramas se munem de uma linguagem passivo-agressiva, adotando de uma posição de superioridade discursiva e moral. Neste contexto, Quando o Sol se Põe (2020) surpreende pela abordagem natural no que diz respeito aos dogmas religiosos. O projeto está repleto de canções gospel e lições sobre a fé superando obstáculos, no entanto, tais mensagens se desenvolvem sem a necessidade de estabelecer um senso de hierarquia: não há personagens “perdidos” e convertidos à causa, nem algum cientista ou cético como vilão. Ao mesmo tempo, a espiritualidade não se resume à pregação em igrejas ou templos. Não há uma única Bíblia em cena. O filme prefere levar a crença ao dia a dia, enquanto parte integrante da vida destes jovens.

Em termos de estrutura, a narrativa adota o esquema mais clássico possível para o filme teen: os protagonistas compõem uma banda e sonham em se apresentar no concurso da escola. A rotina de ensaios enfrenta problemas cotidianos (o alcoolismo da mãe de um dos garotos, a crise financeira da família de outro), enquanto eles descobrem os primeiros amores. Obviamente, os preceitos religiosos dominam o olhar cândido: namorados sequer se beijam quando estão juntos, e os jovens ainda levam flores aos encontros. No entanto, o diretor Fábio Faria se esforça em transmitir a ideia de que seguir os preceitos de Deus seria perfeitamente compatível com a juventude moderna e descolada. Os rapazes da banda usam gírias, admiram as belas meninas, fazem piada com as mães alheias. O início sugere que eles talvez sejam considerados “estranhos” dentro da faculdade, mas nada na história atesta esta configuração social. Quando a apresentação enfim chega, há cartazes, pôsteres e aclamação geral de fãs que desconhecíamos até então. A trama não julga moralmente a mãe divorciada, nem a garota que deseja sair à noite junto do irmão. Prioriza-se a noção ampla de fé às interpretações mais conservadoras da sociedade, frequentemente extraídas dos textos sagrados.

Apesar do retrato tolerante do cristianismo, Quando o Sol se Põe apresenta problemas de direção e roteiro. Primeiro, diversas cenas transparecem debilidades na montagem: a sequência sobre o alcoolismo de Mara (Roberta Foster) possui falhas de continuidade de luz, de imagem e de correção de cor; a conversa dentro de um carro, à noite, traz uma fotografia bastante artificial, assim como o tom azulado na secretaria da universidade. A montagem prefere fazer cortes internos dentro de uma imagem a deixá-las cumprirem sua duração, talvez em busca de um dinamismo que não se concretiza. Cada clipe musical adota um volume muito mais alto do que as conversas, ao passo que as sequências se encerram com alguma paisagem genérica da região. Mesmo que a abordagem seja genérica, a produção traz uma aparência geral polida dentro do padrão estético televisivo ou publicitário. O teor autoimposto do feel good movie faz com que atuações exagerem nas caras sorridentes demais (caso de Samuel Araújo) ou excessivamente vilânicas (a aparência casmurra de Ricardo Andrade, o antagonismo caricatural de Eduardo Pereira). Para cada atuação competente (Priscila Alcântara e Lito Atalaia, em particular), há composições fraquíssimas dos coadjuvantes (Tom Leme e Edson Bruno parecem extraídos de alguma aventura infantil).

Em paralelo, o drama é prejudicado pela tendência a representar conflitos importantes apenas pelo diálogo. Há uma personagem com alcoolismo que nunca bebe, outro com problemas financeiros que nunca vemos, e uma terceira sofrendo com um divórcio apenas mencionado. O caso mais grave se encontra na introdução de uma doença grave. O personagem afirma ter emagrecido, faltado a várias aulas, discutido todas as alternativas possíveis com o médico, mas nada disso se traduz em imagens. Nem o espectador, nem os amigos próximos perceberam o desenvolvimento de uma leucemia em fase terminal. O drama confunde a enfermidade com alguma febre comum, limitando-se a cobrir o personagem com um cobertor para sugerir debilidade. A verossimilhança dependeria pelo menos do trabalho com símbolos para tornar estes conflitos críveis – que fossem laudos médicos, remédios, etc. A conclusão novamente nos priva das resoluções, resolvidas por meio da rápida narração em off explicando o que deu certo e o que deu errado. A noção de milagre se expande à narrativa: a maioria dos problemas magicamente desaparece. Como esperado, o otimismo impera nesta visão sobre a melhoria de vida através da crença em Deus.

“A vida é tão curta! Se todo mundo desse valor a cada minuto dela, o mundo seria mais feliz”. “Se as pessoas fossem bem diferentes, o mundo seria melhor”. Os diálogos ainda carregam ensinamentos fáceis, incapazes de abarcar a complexidade social, porém distantes do caráter prescritivo religioso. Seria desonesto resumir os diálogos a estas pílulas de sabedoria: para cada ensinamento de valores, há numerosas conversas reproduzindo a leveza da juventude, o jeito amigável de brincar e se provocar. De modo geral, o tom se revela adolescente demais para uma trama sobre jovens na faculdade, mas esta seria uma consequência esperada da “purificação” dos relacionamentos amorosos – vide a paixão platônica de Gabriel por Olivia, e a declaração de amor de Bruno por Jeny. Ainda que a conclusão seja previsível, ela representa um avanço considerável na cinematografia cristã brasileira, que finalmente deixa de tratar o diferente como um inimigo a ser derrotado e/ou convertido, preferindo reforçar a fé daqueles que compartilham a mesma visão de mundo. Haveria progressos a fazer em termos de direção – cristianismo não deveria ser incompatível com ousadia e refinamento de linguagem -, mas o filme representa uma experiência agradável ao seu público-alvo, além de palatável aos demais. A ideologia cristã se torna uma proposta de comunhão ao invés de uma ferramenta de combate.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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