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Sinopse

Pureza sai em busca de seu filho, Abel, desaparecido após partir para o garimpo na Amazônia. Em sua busca, acaba encontrando um sistema de aliciamento e cárcere de trabalhadores rurais. Ela se emprega numa fazenda, onde testemunha o tratamento brutal de trabalhadores e o desmatamento da floresta. Escapa e denuncia os fatos às autoridades federais. Sem credibilidade e lutando contra um sistema forte e perverso, ela retorna à floresta para registrar provas.​

Crítica

O maniqueísmo raramente constitui uma boa ferramenta narrativa, sobretudo para histórias reais de cunho político-social. Compreende-se os motivos que levam cineastas a construírem personagens muito bondosos lutando contra um sistema muito maldoso. A simplificação amplia o alcance do discurso: não há dúvidas quanto às denúncias deste projeto. Qualquer espectador será capaz de compreender o grave problema do trabalho escravo que persiste no Brasil, além das dificuldades políticas de superá-lo. Ao mesmo tempo, entenderá que a atitude correta consiste em denunciar este mecanismo, lutar contra as opressões e ajudar os desprivilegiados. A luta do bem contra o mal também evita ambiguidades quanto ao posicionamento da direção: é evidente que Renato Barbieri critica os fazendeiros exploradores da região Amazônica, enquanto defende Pureza (Dira Paes), uma mistura de mãe sofrida, heroína destemida, mártir em nome da causa e repórter de guerra quando a narrativa lhe solicita. “Mas esta é uma história real”, pode-se contra-argumentar. Pureza existe realmente, é verdade. No entanto, questiona-se menos a verossimilhança dos atos do que a maneira idealizada com que são retratados.

A protagonista reúne todas as qualidades possíveis. Mulher trabalhadora, mãe carinhosa e investigadora sagaz, ela ajuda desconhecidos, movendo-se por um romântico instinto materno. Não há qualquer indício de que o filho Abel (Matheus Abreu) esteja de fato preso a uma fazenda, escravizado pelos proprietários. Entretanto, Pureza aposta nos sentidos afiados (“Estou sentindo um aperto em meu coração”) ao abandonar sua casa sem voltar para trás. A mulher não tem familiares, amigos, interesses amorosos. A existência dela é justificada pela busca de Abel, em primeiro lugar, e para se tornar a mãe postiça de todos os peões, num segundo momento. Caso a vocação altruísta não esteja clara o suficiente, os personagens de rostos assustados reforçam: “Hoje a mãe que eu tenho é a senhora”. Ela confirma, em outra cena: “Todo mundo tem mãe, né”? Esta seria outra consequência direta do cinema educativo: a pressuposição de incapacidade do espectador em compreender os significados mais simples, precisando sublinhá-los à exaustão. Por isso, quando acena à violência sexual contra a heroína, a montagem alterna imagens do traseiro empinado da cozinheira, imagens da virilha do aspirante a estuprador, ruídos de animais selvagens, trilha de suspense e um olhar macabro do vilão no espelho. Ele é profundamente malvado, entenderam? Todos entenderam mesmo? Têm certeza? Vai mais uma imagem, para garantir.

A insistência decorre do fato que o maniqueísmo implica numa visão de mundo espetacularizada, além de uma estética particular. A trilha sonora traduz a aspiração aos moldes hollywoodianos, sendo ao mesmo tempo invasiva e reiterativa. É preciso dizer ao espectador quando temer, quando sofrer com Pureza, quando ficar aliviado pelas conquistas dela. Rumo à conclusão, a orquestra imponente se acentua a tal ponto que abraça o código dos filmes cristãos, com a chegada de um Jesus crucificado e o abraço com Nossa Senhora. A comparação talvez soasse exagerada caso o título, a bondade determinante de um padre e os flashbacks de sofrimento não condicionassem esta leitura por conta própria. Além disso, Pureza veste um manto branco sobre a chuva, abraçando generosamente o cadáver de um rapaz, antes de se entregar ao estupro enquanto estratégia de fuga (escolha narrativa questionável, diga-se de passagem). Sabendo da perseguição que sofre, retorna sem pestanejar ao local de abate. Mãe coragem, mater dolorosa, madre, santa: ela reúne todas as virtudes, e também os clichês, relacionados à função materna.

Em paralelo, a imagem grandiosa em scope, e predileção por feixes de luz enfumaçados invadindo o plano, os figurinos desgastados demais – ela também constitui a matrona de ancas largas, desprovida de vaidades – atestam a predileção pelo embelezamento da miséria. O roteiro adota um sem-número de conveniências: a solicitação abrupta de uma cozinheira no instante em que Pureza se apresenta entre os homens, o posicionamento do escritório dos malvados dentro da cozinha (ou seria a cozinha dentro do escritório?), as negociações ilegais diante da testemunha, a facilidade com que se introduz uma palestra sobre trabalho escravo (Vocês já entenderam que esta é uma questão grave, certo? Têm certeza? Não querem que explique de novo)? A política institucional se condensa na figura de uma ativista (Mariana Nunes) tão útil enquanto deus ex machina quanto ingênua nas estratégias de luta. Se agisse com tamanha inocência, a organização real que serviu de inspiração ao longa-metragem jamais teria conquistado tamanhos avanços nos direitos trabalhistas. Mas não se preocupe: com a boa vontade de Pureza, acordos envolvendo senadores corruptos serão abandonados com uma canetada, e fazendeiros sanguinários se entregarão sem reclamar. Nem nas animações infantis os vilões se rendem com tamanha facilidade.

O elenco se dedica com afinco, sem dúvida. Dira Paes é uma das atrizes mais comprometidas do cinema brasileiro, encarando com garra a personagem difícil de retirar da caricatura. O sotaque, os olhares e as falas são transmitidos com humildade pela grande intérprete. Mariana Nunes, Flávio Bauraqui, Cláudio Barros e Sérgio Sartorio evitam demarcar em excessos as intenções suficientemente claras pelo texto, resultando num trabalho coeso de elenco. Há recursos técnicos e de produção suficientes para retratar a amplitude da fazenda, as reuniões ministeriais, a fuga da cidadezinha pobre, a busca incondicional pelo filho. Em outras palavras, Pureza nunca resulta numa obra descuidada – suas escolhas soam voluntariamente calibradas para obter tal efeito. Consequentemente, evidencia tanto as boas intenções quanto o alcance político limitado. Não se sabe como o problema surge, de que maneiras se perpetuava ontem e hoje, que frentes ativas (partidos, ONGs, sindicatos) atuam no tema, como superá-lo sem abrir mão de sua vida e se oferecer como espiã de uma máfia perigosa. Discute-se uma questão política e social bastante pertinente ao Brasil pecuarista de Jair Bolsonaro, porém sob uma perspectiva ostensivamente moral.

Filme visto online no Festival de Cinema de Vitória 2020, em novembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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