Crítica


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Sinopse

Buscando expor as mazelas do tráfico humano que acontece numa região da Nigéria, uma jornalista decide se passar por prostituta, logo tendo contato com um submundo repleto de dor e desumanidade.

Crítica

O elemento inicial que desperta atenção neste filme nigeriano consiste no uso da câmera. Por uma Vida Melhor (2019) se abre com um plano-sequência longuíssimo acompanhando a caminhada de Oloture (Sharon Ooja) pelas ruas de Lagos, até discutir com prostitutas numa rua, entrar no bordel, ser escolhida por um cliente bêbado, subir as escadas, entrar no quarto e então fugir pela janela. A imagem ininterrupta funciona muito bem por alguns motivos: primeiro, ela permite a compreensão imediata dos espaços. Conhecemos a vida noturna da cidade, com seus vendedores ambulantes, cafetões e golpistas antes mesmo de descobrirmos quem é nossa protagonista, e o que ela faz naquele espaço. Segundo, por jogar o espectador num fluxo ininterrupto de ações, sem explicar exatamente porque a personagem está tão tensa. Os planos-sequências são explorados ao longo de toda a narrativa. Ainda que alguns movimentos de câmera sejam mais bruscos do que outros, eles revelam o desejo de imersão total naquele ambiente. A jornalista disfarçada de prostituta, tentando desvendar os segredos do tráfico de mulheres, não é a única espiã daquele lugar: o espectador também adentra os bordéis escondido como um agente secreto.

O diretor Kenneth Gyang se preocupa acima de tudo com a construção de um cenário de cafetinagem, exploração feminina e miséria generalizada. A presença da jornalista se torna uma desculpa para observar o submundo de dentro, porém com o devido estranhamento – a personagem faz o possível para fugir dos clientes, por exemplo. Sempre que pode apresentar o caso de alguma amiga prestes a viajar à Europa, ou da colega abusada fisicamente pelo cafetão, o roteiro se dispõe a abandonar Oloture e traçar um panorama mais amplo deste cenário desolador. Em consequência, a investigação ocupa um segundo plano: jamais vemos a jornalista vasculhando documentos, escrevendo artigos, nem coletando dados. Abandonam-se os códigos do cinema de espionagem para privilegiar aqueles do drama: a jovem convive diariamente com outras mulheres gentis ou amarguradas, enquanto observa a situação das mesmas. Ela se assemelha uma atriz fazendo laboratório para uma personagem difícil, ao invés de uma repórter destemida. O jornal para o qual trabalha nunca se manifesta sobre a importância do artigo. Ela não possui prazos ou cobranças para além da supervisão de um colega. O filme desperta a curiosa impressão de que a mulher efetua esta jornada por interesse próprio.

O principal mistério de Por uma Vida Melhor se encontra na construção da protagonista. Ao iniciar a trama quando a missão já está em desenvolvimento, o roteiro ignora fatores fundamentais para a construção psicológica da falsa prostituta: a origem da missão, os termos em que foi negociada, o histórico profissional de Oloture, seu passado familiar e objetivos pessoais. Conhecemos pouquíssimo sobre esta mulher, razão pela qual a atuação de Sharon Ooja parece contradizer o roteiro. O texto sugere uma protagonista destemida, movida pelo senso de retidão inabalável. Mesmo diante das maiores violências que uma mulher pode sofrer, ela persiste no caso (“Oloture”, na língua local, significa “resiliência”). No entanto, a atriz adota um olhar tímido, excessivamente amedrontado, que permite interpretar suas ações inesperadas como sinal de ingenuidade, ao invés de coragem. O cineasta se esforça em esclarecer que nenhuma menina vive bem naquela situação. Para não sugerir qualquer forma de idealização da vida de prostituta, o projeto fornece uma galeria de mulheres tristes e/ou agressivas. O discurso prefere vê-las como vítimas e sobreviventes a “mulheres de vida fácil”. Em nenhum momento as festas com champanhe e pessoas ricas inspiram admiração, sendo retratadas com evidente desprezo.

Ao menos, a jornalista possui uma característica importante: ela persiste na arriscada tarefa por questão ideológica. Os heróis e heroínas do cinema tradicional são quase sempre movidos por ganho pessoal ou por honra do amor romântico e familiar. Luta-se contra vilões em nome da esposa querida, dos filhos que aguardam em casa, do reconhecimento profissional por seus esforços. O individualismo reinante nas histórias hollywoodianas não concebe um esforço pessoal que não se converta em ganho prático ou simbólico (status) aos protagonistas. Por isso, esta jovem sem família nem amores, sem filhos nem amigos, e desprovida de qualquer reconhecimento pela missão se torna interessante dentro da linguagem do gênero. Em paralelo, este não é o único fator destoante das regras do cinema comercial. O final faz questão de frustrar as expectativas em termos de recompensa emocional, apostando numa saída muito mais brutal, e realmente surpreendente, para a personagem. Mais uma vez, o cineasta privilegia a denúncia dos casos de tráfico de mulheres à homenagem pelos esforços de sua heroína. A cena na ponte, bem orquestrada em termos de fotografia e som, sublinha a ideia de que a luta do indivíduo é incapaz de destruir um mecanismo muito maior e mais poderoso do que ele.

Por uma Vida Melhor pode levantar diversos questionamentos de ordem moral. Se por um lado ele preserva a integridade da personagem e evita sexualizar seu corpo, por outro lado, filma uma cena de estupro de maneira brutal, quase caricatural, incluindo um plano subjetivo da vítima observando o agressor sobre seu corpo. Se pode ser taxado de fatalismo pelo destino cruel reservado às personagens, ele decide reservar a morte mais sangrenta para um espaço fora do enquadramento, cabendo o espectador imaginar os detalhes do ato. Enquanto a cafetina Alero (Omoni Oboli) ganha uma construção inicial típica da vilã, logo descobrimos que ela também tem contas a prestar a superiores, sendo igualmente explorada. O sistema social se revela muito mais perverso do que a batalha de uma jovem destemida face a um grupo de vilões. O roteiro ousa sugerir a conivência dos políticos com o tráfico de mulheres, além de acenar à corrupção das menores instâncias (os pequenos guardas, os vigias, os chefes da alfândega) numa espécie de “grande acordo nacional, com os políticos, com tudo”. Ao permitir que Oloture seja deglutida por este mundo, Gyang explicita a preocupação em denunciar crimes reais, ao invés de imaginar uma superação simbólica dos problemas nacionais por meio da ficção.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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