Crítica


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Sinopse

Resgate histórico e cultural, tecido com múltiplas línguas, do personagem ficcional identificado com um jeito indefectível de ser brasileiro.

Crítica

Às vezes, a crítica de cinema questiona os filmes documentais, sobretudo aqueles de vertente historicista, pela alternância protocolar entre depoimentos e imagens de arquivo. Não haveria maneira mais criativa de explorar a linguagem?, questiona-se, para escutar como resposta, em geral, que documentários são assim mesmo. Eles se focam no tema e nas entrevistas, ora – como poderiam ser diferentes? Por Onde Anda Makunaíma? (2020) contribui a aprofundar diálogos do tipo. O diretor Rodrigo Séllos também desempenha a função de editor do projeto cujo vigor provém especialmente da montagem. O autor trabalha com entrevistas e imagens de arquivo, mas também interstícios poéticos, fusão de sons e imagens não reincidentes, construções metafóricas, cenas espontâneas (o momento em que uma personagem sugere a entrevista com uma terceira) e cenas controladas (o convite para Paulo José e Joana Fomm reassistirem a Macunaíma, 1969, de Joaquim Pedro de Andrade, diante da câmera). Os recursos se retroalimentam de modo vertiginoso e antropofágico, em consonância com a obra de Mário de Andrade.

A narrativa surpreende por jamais esgotar suas propostas narrativas, nem estéticas. Do início ao fim, são introduzidos novos elementos de comunicação entre Makunaíma, mito original das comunidades Makuxi, em Roraima, e Macunaíma, personagem literário e ícone de uma nação colonizada. Ora as fotos impressas são sobrepostas a paisagens em movimento, durante um passeio de barco, ora os stills do filme e da peça de teatro se transformam numa composição caleidoscópica. Em seguida, o livro tem suas folhas viradas pelo vento, solitário sobre um barco, enquanto gravações antigas são projetadas sobre os rostos dos atores. Nota-se a disposição juvenil em se reinventar, se ressignificar e se contradizer, como convém ao retrato da cultura modernista. Além disso, Séllos demonstra preocupação com o ritmo, equilibrando conversas e a contemplação silenciosa da natureza. Quando se conclui que as entrevistas seguirão o distanciamento impessoal, o diretor revela sua presença em cena, fazendo perguntas aos personagens. O espectador é provocado por estímulos tão coerentes quanto inesperados.

Devido à multiplicação de recursos, é compreensível que alguns elementos funcionem melhor do que outros. O início não provoca as melhores impressões: frases no estilo de “Macunaíma é uma personagem importante do imaginário popular brasileiro" soam didáticas e simplificadas, ao passo que “É aí que começa a nossa história..." acena a uma explicação infantilizada, que o roteiro felizmente dispensa a seguir. Pascoal da Conceição, ator familiarizado com a trajetória de Mário de Andrade, oferece uma interpretação afetada do escritor, apostando em maneirismos que chamam atenção excessiva ao estilo, ao invés do conteúdo. Por volta de dois terços da narrativa, a montagem se acalma. Talvez o autor tenha considerado importante organizar as ideias sobre o clássico dos anos 1960 e a peça de teatro antes da conclusão, apesar dos fragmentos fornecidos até então. Neste instante, Por Onda Anda Makunaíma? torna-se mais convencional, além de excessivamente elogioso quanto a Mário de Andrade, Joaquim Pedro de Andrade, Grande Otelo e Paulo José. O termo "macunaímico" se repete sem se aprofundar. A configuração do filme-elogio (incumbindo-se da responsabilidade de não apenas refletir sobre o tema, mas frisar a qualidade deste) invade o discurso. A montagem, que havia evitado os blocos narrativos, dedica um segmento ao filme, e outro, à peça. A anarquia se contém.

No entanto, estas viradas não comprometem os méritos do documentário. Séllos trabalha com excelente direção de fotografia, captação sonora e edição de som. Nenhuma entrevista relativiza eventuais deficiências estéticas pela importância das falas, ou seja, as cenas possuem méritos estéticos, éticos e discursivos em si. A multiplicidade de pontos de vista conecta a cultura oral e a escrita, a erudição e o conhecimento popular, a arte e a política. Menciona-se educadamente o governo Jair Bolsonaro e seu notório desprezo pelas culturas originárias, nestes “tempos vergonhosos de hoje”, segundo Cacá Carvalho. O cineasta nunca admira o passado (do país, da cultura indígena e do cinema) com nostalgia: o olhar está voltado aos laços entre a colonização e a contemporaneidade. Ao discursar sobre um livro de 1928 e um filme de 1969, o filme extrai reflexões pertinentes sobre o Brasil do século XX, em contraposição àquele do século XXI. Evita-se a armadilha da inevitabilidade histórica (“Enfrentamos estes problemas hoje porque outros ocorreram antes desse”), proporcionando um retrato multifacetado da nação. Não é fácil determinar o “tema” deste documentário o que, no caso, representa um elogio.

A presença de Paulo José poderia gerar um bom debate. É claro que a presença do intérprete do filme original, disposto a revisitar as suas cenas, traz uma camada superior à discussão pela relevância do ator na história do cinema brasileiro. No entanto, a imagem de artistas debilitados desperta receios. Não se sugere que sejam escondidos, ou ignorados a partir do momento em que possuam limitações típicas da idade, ou decorrente de doenças, e sim que reflitamos sobre a imagem da imagem. Que efeito produz a entrevista com um ator brilhante, porém de fala dificultada? O questionamento também valia para as narrações de Domingos Oliveira, ou para os depoimentos de Ruth de Souza – estes dois últimos, falecidos – em produções recentes. É saudável ignorar o estado de saúde em que se encontram em nome do valor que aportam à obra? Ora, a forma implica em conteúdo, especialmente num filme sobre o tempo, e para um artista que trabalha, entre outros, com as palavras. Talvez o cinema ainda não tenha descoberto a ferramenta mais adequada para lidar com a mistura de respeito, reverência e desconforto face ao corpo que envelhece. Afinal, a perenidade das pessoas em oposição à eternidade de suas imagens constitui um tema central na representação cinematográfica, e o documentário trata de literalmente sobrepô-las, via projeção fantasmática. Neste caso, como não citar a morte, eterno tabu? Digressões à parte, a experiência de Por Onda Anda Makunaíma? jamais se limita a si mesma. A sessão expande o debate ao invés de encerrá-lo.

Filme visto online no 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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