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Sinopse

Um casal de amigos de infância se separa depois que a família de um deles sai da Coreia do Sul a fim de emigrar aos Estados Unidos. Mais de 20 anos depois os dois se reencontram em Nova York. Chegou a vez de ambos encararem seus sentimentos.

Crítica

Quais as relações entre aqueles três?”, se questionam, à distância, dois contadores de histórias. As identidades desses que se engajam nesse exercício de imaginação pouco importam – podem ser meros desconhecidos, visitantes de ocasião, figuras meramente passageiras. Podem ser até mesmo este que aqui escreve ou você que se dispôs a ler tal texto. Não faz diferença, afinal. Pois as atenções estão voltadas não aos emissores, mas ao debate em questão. No bar diante deles, três pessoas adultas – uma mulher e dois homens – estão sentados, cada um com uma expressão diversa, em uma conversa que parece amigável, ainda que aos poucos revele fissuras que apontam à traumas passados. O que os liga e, mais importante, o que os levou até esse momento juntos? A conversa que os envolve seria a respeito do presente, de um possível futuro, ou de um provável passado que, de uma forma ou de outra, serviu para traçar seus caminhos até esse ponto onde agora se encontram? Em Vidas Passadas, a diretora e roteirista Celine Song olha para o agora para esmiuçar um ontem que, quanto mais passa o tempo, maior é a sombra que projeta sobre seus personagens.

Na Young e Hae Sung são amigos de infância. Mais do que isso, um realmente se importa com o outro, a ponto dele se colocar em defesa dela se vítima de bullying por algum colega, ou dela se sentir incomodada caso o amigo se saia melhor nos exames finais de semestre. Vão e voltam juntos todos os dias da escola, e, naturalmente, traçam planos em conjunto, mesmo que de forma inconsciente e sem saber ao certo o que isso pode, de fato, significar em termos afetivos. Porém, muito jovens, não são ainda donos dos seus destinos, e se veem sujeitos às mudanças impostas pelos pais. Como no caso da garota, que com a família se vê obrigada a emigrar para a América – primeiro Canadá, depois Estados Unidos – deixando a Coréia do Sul natal para trás. Nesse processo, um acaba se perdendo do outro, por mais que tenham se multiplicado as promessas e as intenções de manterem contato. Importante apontar que isso ocorreu vinte e quatro anos atrás, quando a tecnologia – e as facilidades que delas foram geradas – inexistiam com a força do cotidiano atual. Uma mera vírgula, ou a troca de um nome, pode resultar em um afastamento de mais de uma década.

Pois foi o que de fato acabou acontecendo entre os dois amigos, agora já com idade para se verem como possíveis amantes. Após doze anos sem notícias, Hae Sung (Teo Yoo) segue acreditando que um dia conseguirá reencontrar a velha amiga. A questão é que Na Young (Greta Lee, de Jogo do Dinheiro, 2016) adotou para si um nome ocidental, e agora atende por Leonora – ou simplesmente Nora, que é como a conhecem, inclusive nas redes sociais. Uma postagem dele na página do Facebook do pai dela acaba servindo de ponte entre os dois. E assim, uma relação que até há um instante parecia perdida para sempre, agora se vê reestabelecida e mais forte do que nunca. Mesmo ele seguindo em Seul e ela morando em Nova York, as ligações por Skype e a troca de mensagens de texto começam a se acumular, não havendo momento ou situação que possa impedi-los de estarem juntos, ainda que separados. Até que o gelo se rompe, e um assume para o outro: “sinto sua falta”. A reciprocidade, se havia alguma dúvida, é imediata.

Mas quem disse que relacionamentos à distância são fáceis? Nora e Hae Sung até se esforçam para que o impossível se torne concreto, mas entre os estudos dele e as oportunidades profissionais dela, sonhar com alguém que está no outro lado do mundo não é tarefa fácil. E ao invés de seguirem alimentando esperanças que talvez não deem em nada, o melhor talvez seja cortar – mais uma vez – pela raiz. A decisão de interromperem o contato, dessa vez, não é motivada por outros: vem deles mesmos. E isso abre espaços para outras prioridades: uma namorada eventual, um romance que se torna sólido. Nora se casa com Arthur (John Magaro, de First Cow: A Primeira Vaca da América, 2019), que assim como ela, também é escritor. Ou dois se alimentam de sonhos e expectativas constantemente, e o entrosamento entre eles é real, a ponto dela se permitir um amor de verdade. Talvez não tão idealizado ou perfeito quanto o que sentia por Hae Sung, mas, ainda assim, concreto. Uma certeza que será colocada em xeque após outros doze anos, quando o amigo aproveita uma oportunidade de trabalho para, enfim, visitá-la. Agora estão, uma vida depois, finalmente juntos. E o que têm a dizer quando esse momento, após tanta espera, de fato se apresenta?

Do outro lado do balcão, podem ser vistos duas pessoas orientais e uma caucasiana. A mulher e o homem branco são casados, e o outro de origem asiática é o amigo que estão entretendo por uma noite. Poderiam ser dois irmãos e o amigo deles, ou um casal sul-coreano com o colega norte-americano. Os dois rapazes amantes e ela a melhor amiga deles? Três irmãos, dois genéticos e um adotado? As possibilidades, como se percebe, são infinitas. Assim para quem vê de fora, como, também, para aqueles inseridos no contexto. Um turbilhão de emoções os envolve. Hae Sung demorou para vir, mas quem fez o primeiro gesto foi ele. Nora nunca chegou a voltar, foi a primeira a desistir daquele sentimento infantil, e se agora escolheu um outro namorado para si, quem poderá afirmar o que irá lhe acontecer amanhã? Arthur chega a dizer em certo momento: “nunca me imaginei em uma situação como essa”. Realmente, isso não é algo que ninguém deva esperar para si. Mas, uma vez manifesto, como lidar da melhor maneira? Há um ditado na Coréia a respeito de um espírito especial, uma ligação de vidas passadas que seria responsável pelas probabilidades de um ou outro se unirem numa próxima vivência juntos. E se o agora for apenas o passado do amanhã, e não mais o presente de ontem? Vidas Passadas não quer determinar respostas, mas é feliz em propor perguntas. E isso o faz com imensa sensibilidade e cuidado.

Filme visto no 73º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2023

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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