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Sinopse

Numa viagem para o oeste, um cozinheiro habilidoso se junta a um grupo de caçadores de peles no Oregon. Ali, ele apenas estabelece conexão verdadeira com um imigrante chinês que igualmente está em busca de fortuna. Logo, o dois vão começar a arquitetar um negócio de sucesso.

Crítica

Poucos diretores conseguiriam transformar uma premissa tão singela numa epopeia de 121 minutos como efetua Kelly Reichardt. A princípio, a trama se resume à história de dois amigos nos Estados Unidos do início do século XIX, que decidem roubar o leite da única vaca da região para a produção de doces. Eventualmente, alguém descobrirá que o animal está sendo ordenhado em segredo, e a dupla será punida. Este poderia ser um curta-metragem singelo, talvez uma comédia paródica nas mãos dos irmãos Coen. Para Reichardt, o conflito se transforma numa bela história de amizade, construída com a calma do cinema mais contemplativo e “natural”, tanto no sentido de naturalista quanto de ligado à natureza (os animais, as plantas e os humanos). Embora Cookie (John Magaro) e King-Lu (Orion Lee) comecem suas jornadas dentro de grupos distintos, o roteiro não tarda a afastar os companheiros de cada um – com desculpas apenas razoavelmente convincentes – para deixá-los sozinhos e unidos.

O cinema indie norte-americano (entendido como as produções agridoces selecionadas no festival de Sundance) costuma extrair seus momentos de humor através de convenções desgastadas: a figura de pessoas solitárias implorando por alguma forma de carinho, os encontros com seres ainda mais estranhos durante o caminho, os acidentes de percurso (pneus furados, falta de dinheiro, descoberta sobre o segredo no passado dos protagonistas). A cineasta prefere uma narrativa mais seca e orgânica: embora a estrutura do road movie seja preservada, mesmo que dentro de uma floresta, os personagens não são descritos por suas esquisitices nem psicopatologias, além disso, não há encontros reveladores ou tardes mágicas compartilhadas pelos amigos. Eles não encontrarão novos amores ao longo da jornada, tampouco se abrirão sobre seus passados familiares. A diretora caminha rumo a um cinema depurado, longe de psicologismos fáceis ou atalhos de roteiro. Eles precisam de dinheiro e fazem doces. No dia seguinte, fazem mais doces.

Ao mesmo tempo, Reichardt toma o tempo de filmar os deslocamentos pela floresta, a descoberta de novas botas, as divertidas e carinhosas conversas de Cookie com a vaca cujo leite é roubado na calada da noite. “Sinto muito pelo seu marido”, ele dispara gentilmente ao animal, a respeito do macho que não sobreviveu até o local remoto. As roupas e os cenários são os mesmos durante todo o filme. Ainda assim, há pequenos momentos de pesca, sequências de pratos sendo preparados ou planos para o futuro que tornam estes personagens tridimensionais e passíveis de identificação. A diretora guarda seu humor para a prepotência norte-americana e a falsidade britânica, enquanto demonstra profundo respeito pelos dois maltrapilhos e pelos povos nativo-americanos que convivem com eles. A multiplicidade de ângulos com que a cineasta filma uma garotinha carregando um balde de leite, num momento sem finalidade narrativa aparente, demonstra o apreço pelas pessoas e pela experiência do tempo. O humanismo de Reichardt vai além da função que os personagens desempenham na criação ou resolução de conflitos.

A terna experiência adquire certo equilíbrio de tons a partir da imagem inicial, que revela a descoberta de dois esqueletos lado a lado séculos mais tarde. O espectador sabe o tempo inteiro que Cookie e King-Lu morrerão, restando apenas a descoberta das circunstâncias exatas do incidente. Mesmo o confronto com esqueletos perde o caráter de choque diante da imagem tranquila, sem gritos nem planos de detalhe, e ressaltando acima de tudo o fato de terem morrido juntos. Seria tentador insinuar alguma espécie de homoerotismo nos cuidados raros entre os dois homens – um deles, quando convidado à casa do outro pela primeira vez, trata imediatamente de varrer o chão e colocar flores num vaso -, no entanto a diretora não fornece qualquer indício que permita sustentar esta hipótese. Trata-se de uma amizade fraterna, sem grandes rusgas nem momentos de catarse – apenas um companheirismo solidário entre dois sujeitos que um dia se encontram e, quando percebem, não se separaram mais.

First Cow trabalha com a captação em 16mm e janela em formato 1.37 : 1, o que significa uma aproximação do formato de retrato e a limitação do espaço ao redor dos personagens. Mesmo assim, Reichardt explora muito bem os cenários, os interstícios de silêncio, os instantes pontuais de música e a comicidade simples do cotidiano. Cada batente de janela serve a fornecer enquadramentos-dentro-do-enquadramento, enquanto vacas, cachorros e lobos são filmados com a atenção de seres humanos. As atuações centrais são simples, sem afetações nem uma busca exagerada pelo minimalismo, enquanto o ritmo permanece coeso, sem uma única cena se estendendo mais do que as outras. As repetições importantes à trama (a vaca sendo ordenhada, os doces vendidos) são captadas por novos ângulos, com o acréscimo de elementos que impeçam o esgotamento da imagem. O filme comprova o refinamento de tom e linguagem de sua diretora, cuja cinema se torna cada mais vez límpido e dilapidado. Quatorze anos o separam de Old Joy (2006), que também reproduzia a amizade entre dois homens numa floresta. Mesmo assim, o tema semelhante se refinou até atingir um humanismo discreto, que despe personagens e imagens em busca do essencial.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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