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Sinopse

Zoe, David e Marina são experientes astronautas e cientistas numa viagem a Marte. Eles partem dentro de um pequeno espaço concebido para apenas três pessoas durante o trajeto de dois anos. Quando descobrem a presença de uma quarta pessoa na nave, percebem que não terão oxigênio suficiente para chegarem ao destino com todos a bordo.

Crítica

O imaginário das viagens espaciais no cinema carrega bastante tensão inerente. Existe a possibilidade de algum equipamento parar de funcionar, ou de um evento cósmico (chuva de meteoros, de detritos espaciais) colocar a vida de todos em risco. Os autores mais próximos do terror conceberam a intrusão de alienígenas, vírus mortais, doenças inesperadas e outros perigos dentro da aeronave, sem falar em computadores malignos, passageiros enlouquecidos a bordo e a saudade da família distante. A partida para o espaço condensa o medo do desconhecido, a fobia de clausura e a tensão sobre os limites do conhecimento humano face aos mistérios do espaço sideral. Por isso, o subgênero pertencente à ficção científica, aventura ou terror parece tão propício à enxurrada de efeitos especiais, à grandiloquência e ao espetáculo. Diante deste cenário, chega a ser particularmente recompensador descobrir um filme como Passageiro Acidental (2021), dotado de abordagem intimista e singela. Outras produções voltadas à psicologia dos personagens, a exemplo de Ad Astra: Rumo às Estrelas (2019) ainda apostavam no deslumbre de cores e composições.

Já a produção da Netflix é pequena em todos os sentidos: duração, número de personagens, de espaços, conflitos, cenários e efeitos especiais. Há apenas quatro personagens ao longo da trama, incluindo coadjuvantes e figurantes. Não há imagens da rotina do quarteto na Terra, somente menções via diálogos e objetos. Eles iniciam a trama dentro da nave, e permanecerão nela até a cena final. O diretor Joe Penna orquestra um teatro espacial, mais concentrado na solidão e no tédio da jornada do que nas disputas e monstros. O trio de viajantes iniciais possui bom relacionamento, executando tarefas repetidas ao longo dos dias. A comunicação com a base terrestre funciona bem, e em caso de conflito, eles reportam aos superiores, enquanto esperam pela decisão alheia. Mesmo a chegada abrupta de um quarto passageiro, escondido naquele espaço apertado, deixa de despertar estranhamento: o rapaz se integra à rotina dos colegas com facilidade. Michael (Shamier Anderson) evita briga com os colegas, e tampouco desperta romances inesperados. O diretor foge dos caminhos fáceis e manipuladores em termos de sentimentos. A vida de um astronauta incrivelmente qualificado nunca se pareceu tanto com a jornada de um operário qualquer.

Na ausência de grandes perigos espaciais, o roteiro se concentra num único conflito para sustentar o longa-metragem inteiro: o oxigênio é insuficiente para quatro pessoas. Penna se volta ao básico, sem conceber vilões externos nem introduzir a figura de um inimigo. Incapazes de produzir mais oxigênio, nem retirar o gás carbônico em excesso, como resolverão a presença indesejada de um tripulante? A tragédia carrega um subtexto interessante em termos morais e éticos, afinal, o elemento a quem se cogita eliminar constitui um homem negro, trabalhador menos qualificado que os demais, num espaço onde se estima que não deveria estar. Os colegas frequentaram as prestigiosas universidades de Harvard e Yale, ao contrário do quarto passageiro. A possível eliminação da figura desfavorecida em nome da preservação dos mais qualificados, considerados “mais importantes”, desperta um debate amargo por si próprio. É louvável que, apesar das disputas internas, nenhum tripulante se torne um antagonista perverso ou desumano. O diretor toma a precaução de compreender o ponto de vista de cada um ali dentro, inclusive aquele de Michael.

No entanto, elementos fundamentais ganham uma construção frágil. Nunca se legitima a contento a presença deste homem dentro da nave, “por acaso”. De que maneira um erro tão grosseiro passou despercebido pela equipe terrestre, que obviamente preparava a aventura espacial há anos? Inicialmente, esta tensão sugere perigos futuros: Michael teria se infiltrado intencionalmente, com objetivos secretos, ou teria sido colocado de propósito por pessoas externas. Ora, conforme a narrativa avança, o espectador percebe o desinteresse de Penna em explorar estas insinuações, ignorando explicações detalhadas para a presença do viajante acidental. Erros acontecem, aparentemente. Se podemos elogiar a contenção narrativa (o único perigo consiste em sair da nave rapidamente, encher um cilindro e voltar em seguida), também é possível apontar a falta de atenção às construções básicas de verossimilhança. Em paralelo, os personagens ganham mínima construção prévia, ou objetivos para o futuro: Zoe (Anna Kendrick), Marina (Toni Collette) e David (Daniel Dae Kim) são descritos por duas ou três características principais, apenas. O trio possui funções claras (a médica, a comandante e o cientista, respectivamente), ao invés de subjetividades complexas. Por este fato, as atuações soam corretas, sem destaques: os atores possuem margem limitada de desenvolvimento a partir de personagens tão superficiais.

Passageiro Acidental se conclui de forma tão simples quanto se iniciou. Esqueça as invenções mirabolantes, a introdução de algum deus ex machina ou de elementos externos capazes de resolver a situação do quarteto em perigo. O aspecto mais cruel, e também mais realista da obra, se encontra na aceitação tácita de nossas limitações humanas e tecnológicas, assim como da inevitabilidade da morte. O autor explora o gênero enquanto antiespetáculo e oportunidade de frustrar expectativas. Os espaços da nave evitam trazer qualquer interesse estético em si; a tecnologia soa naturalista e arcaica (com portas mecânicas e parafusos corroídos, ao invés das tradicionais transparências, hologramas e luzes azuladas); os experimentos com algas oferecem a imagem de um laboratório comum de biologia. O desfecho descarta discursos inspiradores ou trilha sonora de orquestra. Já as maravilhas decorrentes de estrelas, sóis incandescentes e outras belezas espaciais estão distantes. A ficção científica costuma ser utilizada para refletir sobre aquilo que o mundo, o ser humano e o conhecimento poderiam se tornar, em oposição ao que são de fato. Este filme, em contrapartida, se inicia e se encerra com a constatação de um fracasso. Uma leitura niilista seria plausível neste contexto: diante das nossas ambições colonizadoras e exploradoras, ainda somos insignificantes diante da vastidão do universo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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