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Sinopse

A grandiosa estátua de Ramsés é transportada da praça que recebeu seu nome até um enorme museu egípcio. Uma jornada de 12 horas que se tornou o maior processo de transferência que a cidade do Cairo já testemunhou.

Crítica

A escolha deste documentário para abrir a Mostra de Cinema Egípcio é compreensível: o filme apresenta um país moderno, focado na megalópole do Cairo com suas grandes avenidas e impressionantes obras de engenharia. Para Onde Foi Ramsés? (2019) foge ao exotismo, aos centros turísticos e à representação tipicamente concebida para o olhar estrangeiro, preferindo a abordagem pessoal. Não por acaso, o diretor Amr Bayoumi efetua a narração em off, compartilhando a história de sua infância, relembrando as casas por onde passou, as transformações na cidade e sua memória afetiva relacionada à gigantesca estátua de Ramsés que coroava a praça de mesmo nome. O cineasta elege um elemento extremamente pontual – uma única estátua de Ramsés, entre centenas existentes – para discorrer sobre as transformações políticas e econômicas do país, entre a troca de presidentes e regimes. A adoração ou repulsa à imagem de Ramsés corresponde às interpretações mais ou menos restritivas do Corão, de modo que este símbolo transparece as flutuações de um país em perpétua transformação.

Os melhores momentos do filme se encontram na associação entre o elemento artístico-arquitetural e a história do país. Cada elo estabelecido pelo cineasta entre sua experiência de vida e as quedas e ascensões de presidentes torna a História mais acessível ao espectador, inclusive estrangeiro. Ao invés de simplesmente anunciar a morte de Gamal Abder Nassar em 1954, o roteiro representa esta passagem pelo dia em que o cineasta, ainda criança, descobriu que não teria aulas devido ao decreto de luto nacional, quando observou os pais chorando dentro de casa. Charges, caricaturas e recortes de jornais populares permitem desconstruir a aparência fria da História em prol de sua interpretação cultural: não somos convidados a apenas descobrir os fatos, e sim conhecer a maneira como foram vividos pelos egípcios. A locução nunca adquire o teor de verdade incontestável, apenas uma leitura poética de lembranças nacionais. As passagens sobre as chaves de casa e as procissões de rua permitem acessar o Egito do século XX por um prisma lúdico, ao mesmo tempo que a obra se afasta do período clássico, observado com distanciamento pelo diretor. Um mérito considerável do projeto se encontra no interesse em situar conflitos, cidades e reviravoltas históricas em seus espaços e tempos precisos.

No entanto, tamanha atenção aos detalhes geográficos produz um teor descritivo demais. O terço central da curta narrativa se torna bastante técnico, quando os cuidados de engenharia e transporte são apresentados para se explicar a locomoção da estátua pesadíssima pela cidade. Vemos plantas, cálculos, discussões sobre distribuição de peso nos veículos etc. Bayoumi inclusive oferece um mapa online com o exato trajeto da estátua, explicando por quais ruas passou, durante quanto tempo. Percebe-se a intenção do documentário em servir como registro fatual, no entanto, estes trechos abordam o tema de maneira literal demais. Sempre que se afasta da sociedade e da política para enxergar apenas a estátua enquanto tal, o resultado se enfraquece. Infelizmente, estes trechos são tão numerosos quanto aqueles de avaliação contextual, intercalando preciosos momentos de reflexão com outros de mera constatação dos fatos. Dois professores universitários, especialistas em história do Egito e conservação do patrimônio, são convidados a discorrer sobre o transporte da estátua, porém a montagem aproveita pouquíssimas falas de cada um, subaproveitando os conhecimentos deles. Ao final, uma sequência de mais de dez minutos literalmente acompanha a trajetória de Ramsés pela cidade, em silêncio. Por mais bela que seja a contemplação destes momentos ao vivo, eles se tornam arrastados, pouco dinâmicos, e incomodam por aproveitarem materiais de arquivos de terceiros sem qualquer trabalho de reconstrução.

Além disso, Para Onde Foi Ramsés? depende excessivamente da narração em off para avançar, visto que as imagens não constroem, por si próprias, uma narrativa. O projeto aparenta ter esticado o uso de materiais de arquivo, de modo referencial e acadêmico, para atingir modestos 62 minutos da duração. O produto final constitui um exercício simples enquanto cinema e relação com a História. Pelo menos, ele jamais busca um efeito mais impressionante do que aquele que as imagens jornalísticas e amadoras da locomoção da estátua poderiam provocar. Em outras palavras, Bayoumi tem ciência do escopo pontual de seu tema e sua abordagem. No entanto, esta seria uma oportunidade ideal para opor tradição e modernidade, gestão pública e percepção artística, transformações da sociedade e revoluções políticas. A estátua, enquanto símbolo, representa muito mais do que toneladas de cimento numa praça. A humildade do filme constitui ao mesmo tempo a sua força, pela honestidade e pelo afeto evidente do diretor, e sua limitação, por ignorar temas e questionamentos tão evidentes dentro daquele contexto. Sobra carinho, mas falta ambição ao projeto.

Filme visto online na 2ª Mostra Cinema Egípcio Contemporâneo, em julho de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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