Crítica


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Sinopse

Cebaldo trabalha num cais português, mas sente diariamente saudade de sua família indígena no Panamá. As lembranças persistentes o colocam de volta aos dias na aldeia em Guna Yala.

Crítica

Cebaldo é um personagem forte. Parte da população indígena do Panamá, ele há muito debandou à Europa urbana, assim voluntariamente afastando-se dos seus e consequentemente sendo desterritorializado. Levando em consideração que aos povos nativos a ligação com a terra natal, além da proximidade com os parentes, é algo essencial, ele experimenta um desligamento que não se dá sem consequências permanentes. Por isso, a cineasta Ana Elena Tejera encara esse sujeito a partir da melancolia persistente. Na primeira metade de Panquiaco, fundamentada numa observação do protagonista, entre o trabalho pesqueiro e os demais afazeres que acabam se repetindo até configurar uma rotina, é relativamente fácil discernir os esforços de encenação. Em alguns instantes fica bastante claro que o panamenho está performando à câmera, o que gera um efeito ambivalente, às vezes mobilizador. Mas, a repetição de tomadas longas do homem contemplando o oceano como se quisesse ver para além do alcance da visão, e outras de teor bem parecido, tornam o filme moroso.

Há uma tentativa bem-vinda de entrelaçar esse misto de testemunho e fabulação com o aspecto poético da saudade, dos arrependimentos, da tristeza e da reconexão. O desenho compassado é atravessado eventualmente por palavras, mas também por lampejos dos rituais indígenas. Assim, a cultura afrontada pela contemporaneidade exibe sua resistência. Entretanto, cineasta Ana Elena Tejera tem mais preocupação com a ordem lírica, não se atendo tanto a contextualizações, demonstrações e afins. Existe um viés etnográfico timidamente participante da jornada repleta de signos dispostos com um leve senso de aleatoriedade. Nas bordas do delineamento narrativo que aposta na junção de fragmentos a partir de suas convergências simbólicas, também é possível encontrar costumes, celebrações, o modo como esse povo se relaciona com a morte e, especialmente, a água corrente enquanto catalisadora: ora calma, ora turbulenta, mas nunca inerte.

O ambiente é lido em Panquiaco como imprescindível, inclusive à interação com as ocorrências corriqueiras. Cebaldo é pescador em Portugal, tendo um contato frio e protocolar com a natureza que o sustenta. Isso é sublinhado na primeira metade do longa. O protagonista tem também poucas ligações naquele lugar. Essa noção fica escancarada em episódios como o dele no bar tomando despreocupadamente cerveja no lugar praticamente inabitado. É um instante evidentemente concebido a priori, com o enquadramento milimetricamente pensado para colocar em perspectiva o sujeito e o vazio do estabelecimento, fazendo deste um sintoma. Por um lado, cineasta Ana Elena Tejera quer evocar a naturalidade de certos estados, a ligação com uma ancestralidade que a Europa trata como algo exótico – vide as perguntas feitas pelos colegas em alto mar. Mas, por outro, propõe um fingimento cinematográfico disfarçado de flagrante para atingir determinados efeitos emocionais. A dissonância entre testemunhar e encenar gera ruídos intermitentes nessa produção.

Em Panquiaco, Cebaldo tem um retorno físico, mas sobretudo simbólico, a Guna Yala. Na tentativa de conjurar mitos pré-coloniais em meio a uma trajetória pessoal, Ana Elena Tejera peca por não privilegiar. Diante do protagonista, continua encarando-o como ficcional, evidentemente ponderando alternativas para não perder de vista a concepção de sujeito trágico. Mesmo sendo louvável a organização poética de sons e imagens, e o presente investigado com afinco para revelar traços importantes do passado, falta espontaneidade ao filme. Tudo soa calculado, demasiadamente pré-formatado, o que coloca em xeque a autenticidade das engrenagens e dos diversos apontamentos. No afã de conferir um tempo generoso para que possamos experienciar com menos ansiedade a renovação de um vínculo básico, a realizadora estende planos em função do êxtase decorrente da possibilidade de imersão nesse mundo tão misterioso quanto fascinante. Porém, o acúmulo de circunstâncias parecidas, sem variação de tons e vibração, causa um sobrepeso considerável.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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