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Sinopse

Tati, uma garota de 14 anos, tenta manter sua mãe longe do vício, enquanto espera a chegada de Jaca, ex-traficante que finalmente está livre depois de passar anos na cadeia.

Crítica

Chega a ser curioso se deparar com um filme como Pacificado, ambientado quase que por completo em uma das mais populosas favelas do Rio de Janeiro, cenário tradicionalmente protagonizado por personagens masculinos quando levado para a ficção, e perceber que suas figuras centrais são mulheres. Por mais que Jaca, interpretado com gigantesca dignidade por Bukassa Kabengele (Carandiru, 2003), acabe surgindo como centro das atenções, estão nelas que o circundam as verdadeiras condutoras dessa trama construída sobre linhas muito tênues, tão delicadas quanto as que separam tais comunidades do resto da cidade. A confusão pode surgir a qualquer momento, e se perder, sem chance de retorno, era um perigo vivo e constante. Mesmo assim, o diretor norte-americano Paxton Winters fez de seu longa um estudo de caso dos mais interessantes, seja pelo olhar íntimo que propõe a respeito dos moradores deste universo, como também pelo cuidadoso desenrolar dos acontecimentos que os envolvem.

Rei morto, rei posto. Jaca já foi o nome mais poderoso do Morro dos Prazeres. Era quem mandava e desmandava, quem determinava a vida e a morte daqueles que não cumpriam as regras por ele, e pelos com ele alinhados, estabelecidas. Mas o Brasil, e nesse caso, o Rio de Janeiro, mudou muito desde que o antigo chefe foi preso, quatorze anos atrás. As Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) estabelecidas pelo governo estadual tomaram conta das favelas, com o objetivo de garantir a segurança dos moradores – e de milhares de turistas, é claro – durante as realizações da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Havia, portanto, um novo modelo em ação, dividido entre duas formas de manifestação: a oficial, que pouca pergunta fazia em nome de uma aparente tranquilidade, e a real, que ocupava essas brechas deixadas pelo exercício legal para cuidarem mais de si mesmos do que para oferecer algo em troca para o povo. Como se vê, a notícia de sua soltura foi recebida com entusiasmo por aqueles que ainda se lembravam dos tempos em que mandava. Mas teria ele ainda o mesmo ânimo?

É o que espera descobrir, mais do que qualquer outra pessoa, a jovem Tati (a revelação Cassia Gil), filha de Andrea (Debora Nascimento, irreconhecível). A garota acredita nos rumores que afirmam ser ela filha do traficante. Com uma mãe cada vez mais entregue às drogas, encontra na esperança por esse pai que não conhece a possibilidade de uma vida melhor. Não nos padrões que quem mora no asfalto imagina. Mas distante daquilo com a qual tem se habituado por tanto tempo. Longe dos abusos, das contínuas demonstrações de força, da violência descontrolada, dos exageros sem compromisso. Quer ser menina, mas também anseia por ser vista como adulta. Winters, que assina o roteiro ao lado de Joseph Carter e Wellington Magalhães, não se apressa em dar respostas fáceis. Deixa que o próprio andar dos dias ofereça a ela as respostas que procura. Ali, é cada um por si, num constante embate entre desistir e seguir adiante.

A paz que reina entre quem transita por Pacificado não poderia ser mais artificial. Assim como, é claro, aquela imposta pelas autoridades, que não garante nada além daquilo que pode ser vendido no horário comercial. Jaca quer ser um trabalhador honesto, mas todos o empurram no sentido contrário. Nelson (José Loreto, adequado, num misto de ferocidade e temor) quer manter sua posição, mas cada passo em falso o afasta ainda mais desse objetivo. Dona Preta (uma incrível Léa Garcia) quer não mais do que a oportunidade de reunir a família, mas cada um se afasta por um motivo qualquer. Cenas como a dela com a neta, colhendo ervas e temperos em meio às plantas, indicam uma sensibilidade e delicadeza que o resto do filme não pode se dar ao luxo de desfrutar. É um respiro necessário antes da guerra. Alguns não sairão dela vivos. Mas o que conseguirem manter a cabeça acima dos ombros, esses farão a diferença.

Há um certo fetichismo inegável sobre o olhar estrangeiro a respeito de problemas e condições tão típicos dos brasileiros. Porém, ao contrário do que se pode observar em Trash: A Esperança Vem do Lixo (2014), por exemplo, a visão apresentada em Pacificado denota uma proximidade e um contato com a realidade muito mais factível. Os anseios dessa menina, as desilusões da velha senhora, as transgressões da melhor amiga, o triste fim da mulher que não consegue andar com as próprias pernas. São vidas que, de uma forma ou de outra, apenas aparentam algo, quando, na verdade, queriam muito mais. Por isso mesmo, será justamente naquela mais jovem, a que mais busca por mudanças, onde as apostas recairão. Será quem terá que mostrar a todos os demais que tal confiança não era vã. Ela é tanto a chave como o segredo, de que algo maior pode vir, assim como pode também se perder num breve piscar de olhos, caso cada passo não seja dado no seu devido lugar. É o novo tomando conta do velho, sem substituir nem eliminar, apenas encontrando o seu espaço de direito.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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