Crítica


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Sinopse

O músico Arrigo Barnabé discute suas influências, o processo criativo de suas composições e a possibilidade de criar uma "música erudita popular" no Brasil.

Crítica

Quando observa outro artista, a diretora Paula Gaitán enxerga em primeiro lugar uma mente em estado de criação, um pensador. Em É Rocha e Rio, Negro Léo (2020), aproveitava a convivência com Negro Léo para discutir influências, referências, além de política e sociedade. O procedimento se estende a Arrigo Barnabé em Ostinato (2021), projeto mais modesto em amplitude e subversões, porém primo do documentário anterior. A cineasta jamais acompanha a trajetória de ascensão e consagração de Barnabé, seus principais trabalhos nem sua vida pessoal, como fariam os filmes convencionais. Ela deseja compreender acima de tudo o que ele pensa, e como pensa. De que maneira compõe? Em que circunstâncias escuta música, e que sentimentos as notas evocam nele? Desde as primeiras cenas, o protagonista se encontra em frente ao piano, dedilhando acordes, destacando a força de algumas composições enquanto sublinha a fluidez de outras. Ele apresenta suas ponderações como evidências que pudessem ser facilmente compreendidas pelo interlocutor.

O artista desperta grande interesse pelo vigor com que exterioriza seu raciocínio. “Posso falar?”, ele pergunta mais de uma vez, ansioso. Nesta obra, há certa equivalência entre sujeito filmante e sujeito filmado: Gaitán demonstra tanto interesse em escutar Barnabé quanto este tem interesse em ser ouvido. O músico não presta um favor à diretora, nem consente humildemente com a iniciativa alheia: trata-se de um encontro de igual para igual. Em consequência, a narrativa se converte gradativamente num bate-papo despojado. A voz da diretora, fora de quadro, se faz mais presente, rebate, contesta as afirmações do colega (a longa tirada sobre o uso do termo “escatologia”), até verbalizar considerações de maneira extensa. O projeto se constrói com Arrigo Barnabé, e não sobre ele. Afinal, enquanto o compositor cria, a cineasta também o faz. Algumas cenas, em estrutura ficcionalizante, soam concebidas por ambos em sintonia, a exemplo do trecho em que o personagem encara a câmera, parado sobre a sacada, até abandonar este espaço e permitir ao dispositivo se focar na cidade ao fundo. Esta coreografia seria, se não ensaiada, ao menos facilitada por ambas as partes. A performance se converte em dueto.

Os melhores momentos surgem da admiração silenciosa a Barnabé. Fascinada pelo tempo e pelos processos, Gaitán observa o artista ao piano, tocando enquanto a câmera passeia pelas teclas, pela parte interna do instrumento em composição próxima do abstrato, até retornar ao corpo do músico. O som adquire movimento e percurso próprios. Deste modo, o cinema jamais se torna refém do entrevistado e protagonista, traçando suas composições simultâneas. A partitura real nasce apenas na fase de montagem, quando a fala da diretora é retirada de cena, para se introduzir uma narração em off de Barnabé, sobreposta ao rosto do personagem, como se ele refletisse às considerações da cineasta ou escutasse a si mesmo. Na maioria dos documentários, o respeito por uma pessoa admirada implica na mínima intervenção possível: diretores “humildes” oferecem o palco/cena a seus heróis para se expressarem sem freios. Felizmente, a cineasta jamais permite essa configuração hierárquica, intervindo, avançando ou recuando conforme ele também o faz. Além de se tornar dueto, a narrativa constitui um tango entre amigos dotados de intimidade suficiente para rebaterem um ao outro. A naturalidade desta interação constitui um mérito notável da abordagem.

“Nós vivemos um momento da decadência do gosto”, decreta o artista que sonha em estabelecer uma “música erudita popular”. “É como se um sertanejo tomasse um ácido e fosse compor”, provoca, a respeito de seu estilo de criação. Barnabé possui uma articulação fascinante de ideias, tão desconexa quanto criativa, justificando a tese pessoal de que seria mau teórico. O documentário utiliza o termo “ostinato”, referente aos padrões musicais dentro de uma composição, para repetir trechos, reincidir em algumas falas e desenhar um percurso labiríntico, avesso à expectativa de finalidade. Assim, dialoga esteticamente com o pensamento e a obra de seu personagem. Apesar da construção humilde em termos de estrutura, o filme possui grandes ambições discursivas, sobretudo nas comparações entre a música “natural”, formada por ruídos das ruas e da natureza, e a música composta no intuito explícito de ser consumida enquanto peça artística. Toda música seria arte? Estendendo a reflexão, pode-se questionar: toda imagem seria cinema?

Com 55 minutos, o formato de média-metragem provoca certo incômodo. Ostinato se encerra numa curva ascendente, em seu melhor momento, quando havia encontrado o tom ideal do diálogo. O recurso de levar Barnabé ao centro da cidade, no papel de profeta/messias da praça públicas, poderia gerar resultados ainda mais expressivos. O argumento segundo o qual a arte contemporânea seria incapaz de dialogar com o público abria uma via potente que o filme despreza (ou seria o corte seco do final um aceno à incomunicabilidade?). O documentário cresce, subverte sua estrutura, oferece repetições, e se conclui antes de um desfecho – em outras palavras, ele desconstrói uma forma sem necessariamente construir outra sobre os escombros, exceto na consideração dos escombros como finalidade em si mesmos. Talvez esta seja apenas a implicância de um olhar acostumado demais aos longas-metragens, mais valorizados no círculo artístico do que os médias, taxados de incompletos ou indecisos. A lacuna da conclusão pode representar um posicionamento provocador: depois do som, o silêncio; e contra a noção de finalidade, uma suspensão. Se o encerramento significa uma forma de morte, uma definição, então que não se conclua jamais, visto que após as reticências é sempre possível continuar.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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