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Sinopse

Rosina tem 14 anos e mora numa pequena cidade litorânea aterrorizada pelo aparecimento de tubarões. A fim de ajudar nas finanças domésticas, ela trabalha com o pai, ajudando-o a cuidar de propriedades de veraneio. Durante essa função, ela conhece Joselo, pescador mais velho por quem prontamente se interessa.

Crítica

Dizem que há tubarões na praia. Rosina (Romina Bentancur) não tem certeza de ter visto os animais, e os moradores desta cidade litorânea jamais encontraram os predadores de fato. Mas tudo indica que existem tubarões, pelos peixes que aparecem mortos e pela mudança de cor nas águas – seria sangue? Ao mesmo tempo, as casas estão sem água, e em plena temporada de verão, as pessoas sofrem com o calor e o desconforto. A cadela de Joselo (Federico Morosini) está prestes a dar à luz, a irmã de Rosina, Mariana (Antonella Aquistapache), espera pela nota de uma prova importante. Quanto ao pai, a chácara da qual cuida precisa estar impecável para a chegada iminente dos proprietários. Em Os Tubarões, todos os personagens esperam algum evento importante sobre o qual não possuem ingerência. Enquanto isso, vagueiam, procrastinam, postergam planos.

A diretora Lucía Garibaldi propõe uma narrativa bastante singular. Não existe uma única reviravolta de fato – ou seja, um evento que transforme a vida dos personagens -, nem mesmo se encontram conflitos propriamente ditos – o choque entre vontades opostas – mas o roteiro se sustenta através de uma tensão constante, uma ameaça de perigo relacionada à vida (os filhotes da cadela) ou à morte (o ataque dos animais), ao sexo (Rosina deseja perder a virgindade com um funcionário da chácara) ou ao luto (a garota se despedindo da adolescência e provocando o pai). A protagonista está sempre em fuga, escapando à casa e aos deveres rumo a algum destino indeterminado. Talvez as pessoas ao redor sequer percebam estas escapadas, razão pela qual Rosina se vê obrigada a aumentar a intensidade das provocações.

Existe um caráter perverso nos atos da garota, assim como na relação do filme com o espectador. Assistimos, de maneira onisciente, às ações de todos, e descobrimos em primeira mão os segredos que a jovem esconde. Somos testemunhas de planos cruéis, executados não para o nosso prazer, mas diante dos nossos olhos. O público possui uma relação ao mesmo tempo ativa e passiva diante da rebeldia da garota: enquanto somos convidados a compreender sugestões e preencher lacunas, não podemos fazer nada sobre os segredos que nos são confiados, por não permitirem antecipar as surpresas que virão. Esteticamente, isso se traduz numa série muito estimulante de close-ups na tela scope, de modo que o rosto da atriz ocupe a maior parte da imagem, mas ainda deixe espaço para que outras ações importantes ocorram ao lado, ou ao fundo.

Garibaldi controla muito bem seus enquadramentos, em cenas deslumbrantes como a partida de futebol (enquanto Rosina coloca um plano em ação em outro terço do enquadramento) ou a aparição da cadela fugidia ao fundo da imagem. Quando um grupo de pessoas conversa, em off, é o rosto da garota que enxergamos, reagindo aos estímulos que o mundo lhe apresenta (especialmente nas conversas sobre sexo). Felizmente, o filme conta com uma ótima atriz, de olhar expressivo e curioso, mas suficientemente resignada para acreditarmos em sua vingança simbólica contra a inércia local. O silêncio da protagonista jamais se confunde com passividade ou desinteresse: em cada rosto fechado existem novas represálias sendo concatenadas pela garota, e muito bem sugeridas ao espectador.

Seria quase irresistível comparar Os Tubarões com os primeiros trabalhos de Lucrecia Martel, como O Pântano (2001) e A Menina Santa (2004). Diversos dramas latino-americanos têm sido apontados como seguidores dos traços autorais de Martel, algo que se revelou tanto uma boa chave de leitura – para compreender o peso destes filmes originais – quanto uma muleta de interpretação, uma facilidade crítica. Quando vários personagens se cruzam dentro de casa, através de diálogos realistas, estimulados por desejo sexual e diferenças de classe, apela-se logo a Martel e O Pântano. Tigre (2017) e Família Submersa (2018) foram algumas dessas obras “herdeiras”, e agora Os Tubarões vai além, por não apenas reproduzir a configuração familiar e espacial citada, mas também incluir a relação entre água e erotismo, entre a irracionalidade dos bichos e a agressividade dos homens, em adição ao ponto de vista adolescente e feminino.

Pertinente ou não em sua filiação, o projeto de Garibaldi possui méritos suficientes para se sustentar enquanto obra autônoma. Além do precioso controle estético e trabalho de direção de atores, Os Tubarões se converte numa bela crônica de costumes, capaz de extrair humor das coisas banais, porém tão humanas, como a mãe incapaz de usar o computador, a infantilidade dos caseiros durante o trabalho ou a irmã ameaçando cuspir no irmão mais novo. A cineasta constrói gestos e falas bastante verossímeis, mergulhando este ritual de passagem à fase adulta nos códigos de um conto perverso, alimentado pelo símbolo dos predadores. De fato, talvez o drama guarde maior afinidade com os belos contos de Julio Cortázar, para quem os animais forneciam inesgotáveis possibilidades de alegoria à crueldade humana, do que à sensualidade de Martel.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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