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Sinopse

Uma mulher idosa é conhecida em seu vilarejo boliviano por ter servido um prato de sopa a Ernesto Che Guevara, cinquenta anos antes, quando ele foi preso dentro de sua sala de aula. Às vésperas do aniversário da morte do líder, os governantes locais preparam uma cerimônia e convidam a professora para uma homenagem. No entanto, diversas senhoras começam a reivindicar a posição da verdadeira professora que teria entregue a sopa ao Che. Incapaz de provar sua versão dos fatos, a professora original tem sua vida arruinada pela possibilidade da mentira.

Crítica

Era uma vez uma professora idosa num vilarejo rural da Bolívia. Cinquenta anos atrás, a mulher ofereceu um prato de sopa a Che Guevara, preso por militares dentro de sua sala de aula. Grato pela comida, o líder revolucionário declamou um poema sobre flores. Esta ficção nasce de uma dupla sobreposição entre mitos e lendas. Por um lado, Ernesto Che Guevara, homens cujas conquistas se misturam no imaginário popular, dificultando a distinção entre fatos e idealização. Por outro lado, a fábula doce sobre a professora primária, que teria experimentado o contato breve, porém marcante, com o grande homem. As ficções alimentam-se uma das outra: a cidadezinha converte-se em passagem turística onde se vende garrafas d’água “abençoadas pelo Che”, e onde diversas mulheres começam a reivindicar o posto, agora folclórico, da verdadeira professora primária. Quem seria a real personagem? O episódio teria ocorrido de fato? Situado num povoado descolado do tempo e do resto da sociedade, Os Nomes das Flores (2019) se torna uma potente fábula sobre nossa relação deturpada com os fatos.

Em tempos de fake news, espetacularização dos dados e desinformação em massa, os ícones são tanto aprendidos quanto construídos socialmente. “Precisamos respeitar a História. Estamos destruindo-a com histórias falsas”, alerta um oficial do Estado ao acusar a professora (Bárbara Cameo de las Flores) de falsidade ideológica, às vésperas da cerimônia de cinquenta anos da morte do líder. Dentro desta fábula repleta de lobos, mas poucas mocinhas indefesas, a possível mentira a respeito do passado arruina a vida de uma senhora idosa. O diretor Bahman Tavoosi jamais confirma se a conversa com Co Che realmente aconteceu, e quem foi a verdadeira professora envolvida. Nem mesmo o famoso poema será mencionado ao longo da trama – talvez se trate do famoso “Os poderosos podem matar uma, duas, três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera”, porém não há confirmações para tal. A narrativa prefere brincar com o imaginário, envolvendo o espectador no jogo de adivinhações. Ainda que carregue um aspecto trágico, com imagens silenciosas e dramáticas, o roteiro ostenta a aparência de teatro do absurdo graças às circunstâncias impensáveis a partir da singela premissa.

Tavoosi efetua escolhas bastante particulares para narrar a trama. Primeiro, escolhe uma protagonista atípica: a professora jamais pronuncia uma palavra sequer ao longo do filme, o que aprofunda o caráter misterioso sobre sua personalidade. Segundo, ele oculta a maioria das ações, sugerindo-as por meio de letreiros manuscritos, simulando inscrições na lousa negra da sala de aula. Ao invés de filmar o colapso na vida da protagonista, o autor o descreve por escrito, para então representar apenas o rosto desolado de Bárbara Cameo de las Flores, uma mulher de expressões fortíssimas, capazes de sugerir uma infinidade de leituras. A relação com o espectador remete às histórias contadas para crianças antes de dormir: evoca-se dragões e princesas, monstros e fadas, mas caberá ao interlocutor desenvolver em sua cabeça os aspectos espetaculares da trama. Curiosamente, o convite à imaginação se cola a uma passagem histórica, propiciando uma reunião inesperada entre opostos: por um lado, o fato, de natureza intrinsecamente verídica e verificável, e por outro, a fábula tragicômica, próxima da fantasia (vide o efeito curativo das águas). Não há qualquer forma de choque estético entre estes registros: o diretor atravessa com fluidez impressionante a verdade e a mentira, a construção do real e a apreensão do mesmo. O drama carrega em si uma atmosfera de sonho, simultaneamente verossímil e impossível.

A conexão entre os mundos ocorre por meio de imagens deslumbrantes, ainda que de louvável simplicidade. O diretor demonstra o prazer dos enquadramentos simétricos, fixos, estabelecendo quadros-dentro-do-quadro através das batentes das portas e janelas, ou então dos monumentos naturais. Observa-se as pessoas por frestas, à distância, mergulhadas nas sombras. Em última instância, este seria um filme sobre o que não se vê: uma cerimônia que nunca ocorre, uma heroína indefinida, um filho músico que nunca vemos tocar, uma professora que nunca ensina. Tavoosi testa os limites de nossa descrença e capacidade de fabulação a partir do universo de símbolos, os principais sendo o vaso de flores e o retrato da mulher enquanto jovem. As composições, impecavelmente fotografadas e editadas, provocam um efeito potente quando o vaso se quebra pelo vento, ou o vidro do quadro se rompe com a violência das autoridades. Flores e frutas são retratadas conforme a evolução da natureza morta. O drama apela para iconografias clássicas, em relação direta com o imaginário coletivo de respeito aos mais velhos, do valor do ensino, da delicadeza das flores.

O melhor aspecto de Os Nomes das Flores se encontra em sua implacável ironia: ao estabelecerem uma feroz disputa de narrativas em busca da professora verídica, os organizadores do evento se afastam cada vez mais dos ideais de defesa dos mais pobres propagados pelo homem estariam homenageando. O drama se converte numa parábola sobre a política, guiada pela cegueira do poder, a defesa de um ponto de vista único, e o abandono do real (as mulheres idosas do vilarejo) em detrimento de sua representação (a personagem da lenda, os cartazes e bandeiras do Che). Para organizar uma festa em nome do líder do povo, massacra-se o povo. Sem qualquer traço de didatismo – algo notável para um filme apoiado em estrutura da fábula, com tantos letreiros – resgata-se uma história ao mesmo tempo contemporânea e universal, ligada à História da América Latina, mas também às organizações sociais do mundo inteiro. É sintomático que a protagonista não possua nome, passado, vontades, nem voz: ela representa algo muito maior do que si, no caso, os transmissores do saber, cujo valor é desprezado em nome do pragmatismo da modernidade.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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