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Sinopse

No auge da repressão da ditadura civil-militar no Brasil, cinco guerrilheiros foram a público renegar a luta armada e elogiar o regime autoritário. A repercussão fez o governo tratar essas retratações como práticas de Estado.

Crítica

O que define um terrorista? A ameaça precisa vir de fora, no sentido de uma nação estrangeira, ou qualquer grupo contrário ao governo pode receber a qualificação? Recentemente, Donald Trump se recusou a considerar os supremacistas brancos norte-americanos como terroristas, visto que constituíam seus apoiadores e importante força eleitoral. Durante a ditadura militar brasileira, o termo era empregado diariamente pelos jornais, em referência a qualquer voz crítica aos militares. Oposição significava perigo e, portanto, terror. A luta armada que assaltava bancos, sabotava planos dos militares e até sequestrava diplomatas foi rapidamente associada a um grupo terrorista – pelo menos, na interpretação oficial que precisava desqualificar o outro para poder atacá-lo. Os Arrependidos (2021), de Ricardo Calil e Armando Antenore, se detém sobre um episódio pouco conhecido dos anos de chumbo: o momento em que cinco guerrilheiros, presos e torturados, foram à público para afirmar que se arrependiam da participação na guerrilha, e defendiam as ações do governo.

Estes homens foram julgados de todas as maneiras, tornando-se heróis reformados para o conservadorismo religioso; armas convenientes para a direita, e traidores da pátria para a esquerda. Os cineastas dão um passo atrás e tentam compreender o que leva homens torturados em pau de arara, espancados e humilhados, a defenderem o regime que os violentou – ou pelo menos, a desculpá-lo. O documentário parte de um gesto de curiosidade e respeito. A presença dos arrependidos provoca incômodo tanto na esquerda quanto na direita, por não se alinhar totalmente com nenhum dos dois campos. Sem surpresas, uma dezena de negacionistas da guerrilha, que se seguiram aos cinco iniciais, recusaram a proposta de entrevista ao filme. Cabe ao olhar da direção extrair o cerne da reflexão por trás do posicionamento dos protagonistas, algo particularmente relevante em tempos de polarização, distorções e desinformação generalizada. Teria sido mais fácil elaborar um projeto sobre um líder adorado, ou sobre os militares sanguinolentos. Calil e Antenore demonstram coragem ao mergulharem num terreno propício a ataques de ambos os lados do espectro ideológico.

A argumentação dos protagonistas rende uma conversa fascinante. A direção se coloca em cena através da voz, revelando as perguntas lançadas aos entrevistados. Existe uma preocupação de transparência pelos autores, e também de despojamento na interação: os homens são vistos na sala de suas casas, com roupas informais, em luz natural. O aspecto de confessionário, ou o tom solene estão distantes deste bate-papo – um motivo suplementar para o desconforto do espectador. Como reagir diante do homem que chama a própria tortura sofrida de “apenas uns petelecos”, defendendo os militares “que precisavam se defender”? Seria a mesma mistura de surpresa e pavor diante de um deputado que homenageia um torturador, sem sofrer represálias por isso? Talvez uma Síndrome de Estocolmo, um recalque mal gerido, um deslocamento perverso da pulsão de morte? Ao longo dos encontros, o roteiro nota a multiplicidade de pontos de vista entre a minimização do arrependimento, o pragmatismo de quem afirma ter tomado esta atitude para permanecer vivo, e a negação de um terceiro que sequer pensa no assunto. Em comum, todos transparecem alguma forma de trauma. Ainda que diferentes da maioria das vítimas, estes homens foram profundamente machucados pela experiência sob o regime ditatorial.

Para não se aterem à posição de ouvintes indiferentes, os autores incluem uma sequência de peças publicitárias produzidas durante os períodos mais violentos da repressão. Enquanto as pessoas eram caladas, perseguidas e torturadas nas ruas, a televisão mostrava famílias sorridentes, brancas e trabalhadoras, ao som de uma canção sugerindo que “Este ano, quero paz no meu coração”. A ironia é ressaltada ao limite do sarcasmo pela montagem, expondo o abismo entre a propaganda ideológica do regime e a realidade brasileira entre 1964 e 1985. Apesar da complexidade do discurso, Os Arrependidos se mostra acanhado na elaboração estética e na utilização de outros materiais de arquivo. No que diz respeito à construção de cenas, enquadramento e expressividade dos planos, este trabalho resulta menos apurado do que as ótimas obras anteriores de Calil, a exemplo de Uma Noite em 67 (2011) e Cine Marrocos (2018). Curiosamente, este é o projeto com maior possibilidade de construção e controle dos cenários, afinal, os homens estão tranquilamente sentados em suas casas, ao contrário da urgência da forte cena de despejo em Cine Marrocos.

No filme de 2021, os rostos permanecem no centro do enquadramento, às vezes com um pedaço de braço da pessoa ao lado invadindo o quadro. Não se investiga o dia a dia destes homens, os objetos da casa capazes de representá-los, o ponto de vista sobre a política contemporânea. Evita-se explorar a luz e o contraste (a fotografia é bastante dessaturada). Os cineastas se atêm a um confronto entre os personagens, hoje na faixa dos 60 anos de idade, aos trechos de vídeos e textos de antigamente. No caso dos arrependidos, o reencontro com suas imagens passadas se justifica pela proposta de análise sobre as transformações da consciência. Em contrapartida, a leitura de uma carta pela viúva e pela filha de Manuel soa eticamente contestável enquanto instrumento perverso de exposição de dores familiares estimuladas pela câmera, com direito a um zoom no rosto. Ora, a viúva ressalta a reticência em ler o texto, pela dor que lhe causa. Os cineastas sabem procurar conflitos e fissuras, embora às vezes em locais pouco apropriados. O que aconteceria num encontro entre estes homens, numa discussão mais ampla sobre a política em geral, sobre a luta progressista contemporânea? Ressalvas à parte, o projeto dilui maniqueísmos ao explorar a diversidade de pensamentos a respeito de um dos períodos mais sombrios da história do Brasil.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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