Crítica

Um homem de volta para casa. Um menino que fugiu dos pais e se refugia em um casarão abandonado. Os dois melhores amigos que lhe dão apoio. A garota que surge pela janela e que irá promover mudanças na dinâmica entre os rapazes. Uma história de presentes, passados e, talvez, futuros. Assim se compõe o enredo de Ochentaisiete, drama ambientado no Equador – mas coproduzido com a Argentina – selecionado para a mostra competitiva de longas latinos do 43° Festival de Gramado. E o número apontado no título, mais do que representar uma data, é também uma recordação de um momento único na vida destas pessoas e do peso que um instante ou dois podem significar nestas jornadas.

Pablo (Michel Noher, filho de Jean-Pierre Noher, em atuação comovente) está de volta a Quito. Como carta de boas vindas, tem um cartão postal da cidade, com dizeres rápidos – “minha casa é sua” – e uma chave. Para lá se dirige, em busca de Andrés (Francisco Perez, de Feriado, 2014). Não o encontra, mas este não tardará a chegar. Mais complicado é lidar com as ausências de Carolina e Juan. Quando crianças, os quatro eram inseparáveis. Hoje, adultos, aquela amizade parece ter se desfeito ou difícil de ser reatada. Ao mesmo tempo em que acompanhamos, nos dias de hoje, essa tentativa de reaproximação, com elementos que vão sendo dispostos aos poucos para colaborar com o entendimento a respeito do que teria acontecido para afastá-los, o vemos crianças atravessando situações cruciais que os uniram.

Juan (Andres Alvares) brigou com os pais e fugiu de casa. Encontrou abrigo em um endereço próximo, um lugar de ninguém que se torna o esconderijo preferido da turma formada ainda pelos colegas Pablo (Nicolás Andrade) e Andrés (Estefano Bajak). Um dia, quando menos espera, surge sem avisar Carolina (Jessica Barahona), que também atravessa um momento de rebeldia adolescente. A atração entre os dois vai sendo construída à medida que se conhecem. Mas Pablo também tem sentimentos confusos, numa busca de amparo diante de uma possível partida provocada pela ascensão da ditadura. Já Andrés sofre com o abandono do pai, que deixou a família para construir uma nova.  Todos possuem seus motivos de revolta, íntimos e sociais. O ombro que um oferece ao outro adquire uma importância cada vez maior. Pactos de sangue são feitos em nome de um amanhã juntos, mas a efemeridade do destino não tardará para se impor.

Narrado em forma paralela entre estas duas passagens temporais, Ochentaisiete é um intrigante drama elaborado pelos cineastas Daniel Andrade e Anahí Hoeneisen, também autores do roteiro e que antes haviam realizado em conjunto Esas no son penas (2005), selecionado para os festivais de Mar del Plata e de Tolouse. O que temos agora é um olhar sensível sobre a vida destes meninos, espelhando uma condição que poderia muito bem ser a de todo um país, e os reflexos que isso provoca na condição atual em que encontram. Como juntar os cacos deixados para trás após tanto tempo? Como lidar com rancores e arrependimentos mesmo diante de uma nova possibilidade de seguir em frente? Dois segundos pode ser muito pouco, mas pode fazer toda a diferença do mundo. E se...?, parecem perguntar os diretores ao montarem dois cenários doloridos, porém com os quais estes personagens são obrigados a lidar. Seguir em frente, aqui, não é uma opção – é uma necessidade. O que pode mudar é a forma como se decide dar esse próximo passo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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