Crítica
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Sinopse
Uma carga de cocaína cai de um avião que sobrevoava uma floresta. A droga é encontrada por um urso-negro que parte para a violência desenfreada depois de se apropriar do carregamento ilícito.
Crítica
Chega a ser impressionante o nível de conservadorismo do brasileiro. Veja, por exemplo, esse filme. Se no mundo inteiro recebeu o nome de Cocaine Bear – ou seja, Urso da Cocaína em tradução literal – por aqui foi rebatizado como O Urso do Pó Branco, um eufemismo que em nada disfarça suas reais intenções. Até porque o “pó branco” visto em cena, se rapidamente confundido com açúcar ou farinha, logo tem sua real natureza esclarecida. E é também a verdadeira razão dessa história ter chegado às telas. Afinal, trata-se de um daqueles casos nos quais a realidade é mais absurda do que a ficção. Inspirado em um episódio verídico, o longa dirigido por Elizabeth Banks mostra o que acontece quando tijolos da droga são jogados a esmo no meio de uma floresta e encontrados por uma ursa – sim, no feminino, e não no masculino, como anunciado – que decide “ingeri-los até a última grama”. Se no ocorrido os eventos que se sucederam foram ainda mais inacreditáveis, por aqui a realizadora teve como principal missão se ater a uma narrativa central e tratar de amenizar suas consequências, para que cheguem até o espectador de forma minimamente convincente. Um esforço árduo, alcançado em parte. O que não significa, de forma alguma, que o resultado, independente dos exageros, sejam desprovidos de humor (tenha sido esse involuntário ou não).
Atriz indicada ao Emmy e conhecida por suas participações em sucessos como a saga Jogos Vorazes e Power Rangers (2017), Banks revelou uma outra faceta do seu talento ao dirigir e produzir a comédia musical A Escolha Perfeita 2 (2015) – o mais bem-sucedido capítulo da trilogia, tendo arrecadado nas bilheterias mundiais cerca de 10 vezes (!) o valor do seu orçamento. Esse impressionante acerto, no entanto, foi seguido pelo tropeço da mais recente versão de As Panteras (2019), que mal conseguiu compensar o investimento. Desfeita a pressão, compreende-se que a agora cineasta tenha decidido exercer sua olhar buscando o inusitado, garantindo que, no processo, alguma diversão resulte desses esforços. O Urso do Pó Branco é exatamente isso, uma proposta despreocupada, que transita por uma rota de excessos na maior desfaçatez, crente do inacreditável que aborda na mesma forma que encara esses cenários em um misto de seriedade com galhofa. Poderia ser algo simplesmente tão ruim que, ao dar a volta, acaba por adquirir um status cult de curiosidade. Mas, não, pois há evidente competência demonstrada pelos envolvidos, até mesmo em orquestrar uma ideia que se mostra destinada a dar errada. E é essa franqueza o elemento crucial para a mistura funcionar.
Em uma participação especial, Matthew Rhys surge logo nas primeiras cenas como um traficante prestes a cometer o seu último ato: a bordo de um pequeno avião prestes a cair, ele joga pela porta aberta a carga que estava transportando – quilos de cocaína – e, ao se preparar para pular de paraquedas, acaba tropeçando e ficando preso, o que lhe garante o mesmo destino da aeronave. Assim, ao invés de uma repetição do “verão da lata” – como aconteceu no litoral brasileiro em 1987 (quando milhares de pacotes contendo cannabis chegaram às praias de Cabo Frio, RJ, até Cassino, RS, após terem sido atiradas em mar aberto por traficantes internacionais) – o que acontece é um ‘piquenique da carreira solta’, por assim dizer. E com um único participante: a tal ursa, que acaba sendo a primeira a encontrar o presente que veio do céu. Assim, possuída pelos efeitos alucinógenos e potencializadores do narcótico, também aumenta sua selvageria e os ataques contra qualquer um que se coloque no seu caminho. Que pode ser desde uma inocente dupla de turistas (entre eles, Kristofer Hivju, de Game of Thrones, 2013-2019) até os verdadeiros donos das drogas, liderados pelo mafioso vivido por Ray Liotta (em um dos seus últimos trabalhos antes de sua prematura morte, em maio de 2022, o que certamente afetou o seu tempo em cena nessa produção).
Tanto é que, antes dele próprio colocar as mãos na massa, por assim dizer, Liotta ordena a alguns capangas a missão de recuperar o que havia sido perdido. Entre estes estão Alden Ehrenreich (como o filho insatisfeito do mafioso que aspira por uma mudança em sua vida) e O’Shea Jackson Jr. (Straight Outta Compton: A História do N.W.A., 2015), um bandido de bom coração, mas disposto ao que for preciso para fazer o que lhe foi ordenado. No encalço dos dois há ainda um policial (Isiah Whitlock Jr., de Destacamento Blood, 2020), indeciso entre a novata que o vê como um mentor (Ayoola Smart, de Juliet: Nua e Crua, 2018) e uma cachorra recém-adotada. O mais engraçado é que essa descrição aponta apenas para a ponta do iceberg – e nem chega a indicar os verdadeiros protagonistas. Essa posição caberia à professora Sari (Keri Russell, que infelizmente não chega a dividir a tela com Rhys, seu companheiro pelos cinco anos de The Americans, 2013-2018). Quando sua filha pequena desaparece, resolve ir mata adentro em busca da pequena, sem ter noção do perigo que as cercam. Já a garota (a ótima Brooklynn Prince, de Projeto Flórida, 2017) está com o melhor amigo quando são atacados pela ursa – e, mesmo assim, conseguem escapar ilesos. Esse quadro caótico se completa com o acréscimo de uma guarda-florestal apaixonada (Margo Martindale, deliciosamente sem paciência), um burocrata sem noção (Jesse Tyler Ferguson, de Modern Family, 2009-2020) e um trio de delinquentes juvenis.
Algo que começa de forma até mesmo banal – uma fuga desajeitada, uma criança perdida, um casal improvável, um acerto de contas entre polícia e ladrão que começa mal e dali em diante só piora – passa a envolver todas as suas pontas soltas em um crescente de anarquia e confusão que se torna quase impossível não se deixar levar por tamanho espanto e exercício do bizarro. O Urso do Pó Branco, como dito anteriormente, foi inspirado em um fato. Pois então, quem acreditaria em um animal que se torna assassino após consumir quilos de cocaína? Na vida real, o bicho acabou morto, e de overdose – obviamente. Nessa farsa levada às telas, ele não só encontra disposição para lutar pelos filhotes ameaçados – em um cenário que lembra os momentos drásticos finais de Branca de Neve e os Sete Anões (1937) – como também se deixa levar pelo momento, desmaiando em cima de ameaças e assustando mais do que partindo para a ação (não que a violência gráfica não se faça presente quando necessária). Enfim, é uma grande brincadeira, e como tal deve ser encarada: alucinada, impossível, despropositada. E, ainda assim, tímida diante do que se acredita ter de fato ocorrido.
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