Crítica

Poucas situações competem com a melancolia de um tango. Apenas superável, talvez, se nos dermos ao direito de imaginar o tango derradeiro, como sugere o título do novo documentário do diretor German Kral. Para além de insinuar uma tragédia ao quadrado – algo tão caro ao destino de ser argentino, como costumava nos lembrar o escritor Jorge Luis Borges – O Último Tango dá continuidade ao gosto do realizador por documentários musicais, como Música Cubana (2004) e El Último Aplauso (2009).

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O núcleo do mais recente trabalho de Kral se concentra na história dos dançarinos Maria Nieves e Juan Carlos Copes. Aproximados pelos interesses da juventude, o casal de adolescentes apaixonados se transformaria na maior referência do tango dançado, posicionando-se junto a Astor Piazzolla como um dos mais importantes expoentes internacionais da música argentina. Contudo, os 50 anos de glória artística da dupla, passados em turnês com espetáculos mundo afora, não se refletiram com igual sucesso na vida conjugal de ambos. Bem pelo contrário, afirmar que a fama lhes custou o amor vem a ser, em parte, a proposta do documentário, uma vez que reordenar o passado desde o presente acaba por ser uma tarefa invariavelmente ingrata.

Para compor O Último Tango, o diretor entrevistou os protagonistas dessa canção até então inédita. Os relatos de Nieves e Copres servem como material e propiciam a recriação ficcional dos episódios narrados. Entretanto, o recurso de intercalar as danças aos relatos funciona de maneira apenas protocolar. Às encenações de época lhes falta um esmero artístico e um furor interpretativo, que acaba por enfraquecer as sequências de dança em meio à dramática trajetória revelada por Nieves. Ali, então, se descortinam as entranhas do projeto. Há uma boa história a ser contada, mas a sua economia artística – e, por vezes, mesmo documental – faz com que o projeto encontre rapidamente os limites do próprio alcance.

Um traço que chama atenção é a preponderância das declarações de Nieves em detrimento das de Copes. Ocupando dois terços do filme, Nieves direciona o longa para um caminho inusitado, menos óbvio e seguramente parcial. Não fica claro o motivo de Copes acabar como figurante de uma história da qual esteve tão envolvido. A suspeita é de que a fama e a família que constituiu após o relacionamento com Maria ataram-lhe as mãos e o silenciaram. Esteticamente, pelo menos, parece justo que, ao se tratar de tango, a narrativa seja abordada por um personagem que – sem companheiro, sem filhos e prestes a parar de dançar com a chegada dos 80 anos – converta o ressentimento na personificação da melancolia.

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O Último Tango é a história do Nieves e Copes, mas sobretudo a vida de Nieves contada a partir do encontro com a música e com Copes, nomes que em território argentino bem podem ser sinônimos. Entre a contextualização da época, de cenários e casas noturnas que marcaram Buenos Aires, vemos justapostos Copes e Maria. A tranquilidade dele ao caminhar acompanhado da mulher e dos cachorros pelas ruas do bairro; e a solidão dela ao regar as plantas. O resultado ingrato de ter se dedicado a habitar o mundo de um amante ensimesmado fez com que Maria colhesse uma trajetória irônica, similar às letras de música que, por tantas vezes, encantaram os palcos pelos quais passou rodopiando com seu único par – outrora rosto a rosto colados.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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