Sinopse
Encarcerado, Ilya deseja encontrar o homem responsável por sua prisão. Ele também anseia pelo encontro com a mãe, a namorada e o melhor amigo, mas a descoberta do fim de sua vida antiga será um problema e tanto.
Crítica
A desobediência do adolescente Ilya (Alexander Petrov) lhe custa muito. Depois de ir a uma festa sem permissão da mãe, acaba preso ao proteger a namorada e passa sete anos na cadeia. Na hora e no lugar errados, é tragado a um redemoinho de infortúnios que não passa pela temporada no cárcere, da qual apenas testemunhamos os últimos minutos, a despedida dos antigos colegas de cela. O verdadeiro martírio do protagonista de O Texto está na liberdade posterior. Solto, ele é levado a pagar o preço desproporcional por sua inconsequência juvenil. O primeiro baque é morte recente da mãe, circunstância que sinaliza uma espécie de tributo cobrado pelo destino ou algo que o valha. Adiante, são novamente as suas ações irresponsáveis que lhe colocam num caminho feito basicamente de encruzilhadas. Decidido a confrontar seu algoz, se vê finalmente cometendo um crime ao qual será efetivamente chamado a responder brutalmente. Frente à asfixia causada pelo acúmulo de fatos incorrigíveis, inadvertidamente assume a personalidade de um cadáver.
Há uma reverência ao suspense nessa trama que centraliza o sujeito prolongando virtualmente a existência de um morto. Após a leitura das mensagens de Pyotr (Ivan Yankovskiy), Ilya dialoga com gângsteres, família e o interesse amoroso do falecido. Desse modo, posterga a descoberta de que o rapaz foi por ele assassinado e, tortuosamente, se propõe a reparar as coisas. Sem uma reflexão balizando tal conduta, o ex-presidiário instintivamente resolve encarar problemas de sua vítima à medida que busca subsídios para sobreviver em outro lugar. Há várias dinâmicas entrecortando a jornada inclinada à sobreposição de tragédias. O homem em busca de redenção; o salvamento de uma vida em troca da extinta; os dilemas morais que apontam à necessidade de escolher entre o futuro e a honra de formalidades familiares; a ligação afetiva com desconhecidos que, por conta da troca de textos, se tornam menos alheios. Além disso, o filme tenta inspirar tensão pela presença dos bandidos. Entretanto, faz falta um mergulho mais radical nesse universo intrincado.
O Texto é beneficiado pelo acúmulo de situações com as quais Ilya precisa lidar e o trabalho de Alexander Petrov como esse personagem agarrado às bordas da existência quando as ondas ameaçam o atirá-lo contra as pedras. Não há tempo para ponderações, por exemplo, acerca da necessidade de decidir entre financiar um passaporte novo – forma imediata de evasão da realidade tensionada – e custear o enterro digno da mãe que jaz no necrotério. Do mesmo modo, passa-se superficialmente pela ligação firmada com Nina (Kristina Asmus), a viúva (que não se sabe assim) em meio à decisão que pode alterar seu futuro. As conexões criminosas do morto, esticadas pelo assassino em vida, também não chegam a se impor como elemento de desestabilização, quando muito sendo a pedra num caminho semelhante a areia movediça. Klim Shipenko gera um par de simetrias entre o assassino e o defunto desovado no bueiro, sobretudo ao instrumentalizar a preocupação materna como dispositivo. Eficiente, mas sem duradouras intensidade e força dramática.
Principalmente a dinâmica com os traficantes carece de inflexões. A repetição das mensagens e tentativas de ligação do comparsa criam uma urgência protocolar. Na verdade, a ausência de coadjuvantes consistentes é o maior calcanhar de Aquiles de O Texto. Quem chega próximo de desempenhar melhor a função vital é justamente Pyotr, cuja história reconstruída no decurso da farsa que dá sobrevida à Ilya é frequentemente mais interessante que os passos tomados pelo protagonista. Klim Shipenko parte da premissa conhecida – o inocente levado a tornar-se culpado após ser condenado previamente – e, ao contrário do que se poderia pensar, não se distancia essencialmente das convenções ao desenhar o percurso pessoal fadado ao catastrófico. Há um quê religioso, pois o protagonista quebra mandamentos cristãos ao longo do filme. O jovem desonra a mãe em duas ocasiões; mata o algoz num rompante de ódio; presta falsos testemunhos aos interlocutores deste; e cobiça a mulher do próximo. Talvez um mergulho nessa leitura metafórica fizesse bem ao martírio.
Filme visto online no 1º Festival de Cinema Russo, em dezembro de 2020.
Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)
- British Independent Film Awards 2024 :: Kneecap: Música e Liberdade é o grande vencedor. Veja a lista completa - 12 de dezembro de 2024
- Cine Kurumin 2024 :: Extensão da 9ª edição leva cinema a comunidades indígenas na Bahia - 12 de dezembro de 2024
- O Sol da Liberdade :: Filme brasileiro sobre a ditadura concorre a prêmio popular na Europa - 12 de dezembro de 2024
Deixe um comentário