Crítica


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Sinopse

Diante da necessidade de criação num ambiente convulsionado pela guerra, cineastas afegãos desenharam um estilo diferente de cinema. O diretor afegão-canadense Ariel Nasr apresenta uma visão original do Afeganistão moderno.

Crítica

De que maneira o contexto de guerra atravessa a produção cinematográfica de um país e, inversamente, como o cinema perpassa as situações de guerra? O Rolo Proibido (2019) se dedica a traçar hipóteses fascinantes a respeito da evolução da cinematografia afegã em meio aos sucessivos conflitos políticos no país. Através de letreiros, em forma de capítulos (“o cinema como espelho”, “a luz na escuridão”), o cineasta Ariel Nasr investiga o cinema enquanto memória de uma época, seja ele documental ou fictício. O roteiro compara a produção em tempos de paz àquela aparelhada pelo Estado, a partir do domínio dos comunistas, e depois dos Talibãs. Em algumas circunstâncias, a arte se torna uma obrigação para disseminar a ideologia oficial, enquanto os grupos rebeldes também fazem questão de criar suas próprias produções para participarem da disputa de narrativas. Em outros períodos, os cineastas registram a guerra apesar de não terem autorização para fazê-lo (quando as lentes grande-angulares são confundidas com armas, motivando disparos dos inimigos), ou então modificam o tema de suas obras de ficção para incorporarem o confronto ao redor. Que obrigação ética os diretores teriam em relação à História do país? Como é possível filmar, de modo responsável e moral, a dor dos outros?

O documentário jamais fornece respostas a estes questionamentos, é claro. No entanto, possui o mérito de formulá-los ao espectador, sublinhando a importância da criação cinematográfica dentro de um país cujas obras são raramente difundidas mundo afora. Queiram ou não, os diretores se condicionam ao contexto sociopolítico – seja para responder a ele, tomando partido de um ou outro lado da batalha, seja para ignorá-lo, em forma de respiro ou escapismo. O estudo reforça o caráter intrinsecamente político da arte: é impossível fazer cinema sem se posicionar, mesmo que de maneira não partidária. O ato de posicionar um tripé e uma câmera diante de uma guerra (real ou encenada) com pessoas morrendo constitui uma atitude grave, interpretada pelos presidentes e tiranos como tal (para o bem ou para o mal). O roteiro retoma em nuances a ideia baziniana do cinema enquanto mumificação do real, ou seja, preservação de algo existente para as gerações futuras. Isso não significa que as imagens refletiriam “a verdade” – uma ambição utópica –, porém elas fornecem um ponto de vista decorrente de sua época, algo igualmente precioso enquanto arquivo histórico. Como pensava o cinema sob ideologia comunista, e depois nas mãos de um regime islâmico?

O símbolo escolhido para condensar o debate se encontra na descoberta de centenas de rolos de película escondidos durante a guerra. Durante o domínio Talibã, quando todas as películas do Afghan Film (o único estúdio oficial do país) deveriam ser destruídas, alguns funcionários, com conivência de alguns Talibãs anônimos ignorando ordens de seus superiores, preservaram a quase totalidade do material numa espécie de bunker. Independentemente do conteúdo de cada rolo, a descoberta deste arquivo constitui uma preciosidade em si. Retirado dos escombros pós-conflito, converte-se num artefato arqueológico, uma pedra preciosa. Ironicamente, todos os esforços para destruir o material apenas reforçam o valor atribuído pelos religiosos às filmagens simples de crianças na rua, mulheres caminhando sem véu, multidões convivendo em harmonia numa praça pública. O cinema vai muito além do objeto-filme ou do símbolo-película: ele se torna a conservação simbólica de uma ideia, a preservação histórica do imaginário coletivo. Os tiranos podem bombardear prédios e eliminar pessoas, mas a poesia, a música, e as sugestões trazidas pelo cinema, para além de seu suporte físico, tornam-se indestrutíveis. A cultura representa o perigo por ser porosa, facilmente assimilável, e revolucionária enquanto abertura ao mundo. Por este motivo tenta-se controlar a produção, censurar os resultados ou restringir o acesso cultural a determinados grupos sociais – sobretudo as mulheres, no caso particular do Afeganistão.

A abordagem de valorização artística aproxima-se também da cinefilia original, ou seja, o amor pelo cinema enquanto valor em si. O Rolo Proibido dedica tempo considerável a declamar sua paixão às salas de bairro, à película, aos projetores de antigamente, à descoberta da projeção vinda do fundo da sala durante a juventude. A defesa desta experiência constitui um posicionamento político, sobretudo dentro de um documentário de captação digital e lançamento online. No entanto, Nasr prefere abordar o cinema enquanto espaço de afeto (ao invés de preservação do patrimônio). Privilegia-se a arte enquanto benefício pessoal e prazer íntimo, em oposição a um bem público e coletivo. O discurso jamais se afasta do panfleto ufanista em defesa do cinema afegão, da beleza existente no país apesar das guerras, e da solidez das produtoras face às ameaças. Há um caráter institucional por trás da reflexão ampla sobre a natureza das imagens. A escolha de entrevistados poderosos (Engenheiro Latif, um dos principais cineastas locais; a filha do presidente do Afeganistão; Siddiq Barmak; a estrela Yasamin Yarmal) reforça a impressão de um panfleto em defesa do poderio oficial da arte nacional. Poucos trabalhadores locais ou pequenos técnicos do cinema são escutados ao longo do processo.

“Prezado espectador. Lembre-se destas imagens, pois não sobrará nada”. A fala é proferida por um profissional-narrador a respeito dos rolos de película encontrados. O cinema torna-se ao mesmo tempo frágil e perigoso, potente e delicado. Ele registra histórias de amor, mas também batalhas sangrentas; ele distrai as massas mas também flagra a localização do inimigo em pleno confronto. Nasr chega a ponto de se indagar sobre a ideologia da linguagem: por aprender a montagem soviética, o cinema de Barmak seria intrinsecamente comunista? Em paralelo, Leni Riefenstahl, cineasta de Hitler, seria uma pioneira notável ou uma pessoa detestável por ter materializado a ode ao pensamento eugenista? Pode-se separar a pessoa da obra, ou a linguagem do discurso? Um travelling é questão de moral, como diria Godard? O documentário jamais se aprofunda nestas reflexões, porém acena à importância de mantê-las à vista. Ele permite refletir para muito além do contexto afegão, tornando-se pertinente para discutir o movimento MeToo ou a situação delicada do cinema brasileiro, ao mesmo tempo fortíssimo e bastante frágil em 2020. Neste período em que atingimos nossas melhores produções, sofremos proporcionalmente os ataques mais brutais de forças conservadoras. Certo, o Brasil não se compara ao Afeganistão em múltiplos aspectos. No entanto, o debate sobre censura, representação da alteridade e documentação de uma época (conscientemente ou não) dialoga com a nossa realidade. Ao término da projeção, os densos questionamentos propostos ao espectador reforçam os notáveis méritos deste filme.

Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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