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Sinopse

Após a morte do pai, Henrique V é coroado rei, obrigado a comandar a Inglaterra. O governante precisa amadurecer rapidamente para manter o país consideravelmente seguro durante a Guerra dos 100 Anos, contra a França.

Crítica

O primeiro impacto diante deste filme não é produzido pelo texto, nem pelos atores: a produção surpreende pela beleza de suas imagens. A fotografia de Adam Arkapaw, habitual colaborador do cineasta David Michôd, não se limita a apreender as paisagens abertas nem a orquestrar cenas de batalhas espetaculares. Arkapaw busca a iluminação mais expressiva durante longas negociações dentro dos cômodos, à beira das camas ou durante banquetes, quando as sombras profundas tornam o jovem Hal (Timothée Chalamet) ainda menor em comparação com os outros homens, e minúsculo perto das proporções do palácio. O contraste profundo valoriza a sensação de incômodo, a oposição de pontos de vista entre Hal e os demais conselheiros, além de mergulhar a suntuosa decoração num fundo vazio, decorativo. Em uma cena, o garoto reclama da solidão do cargo de rei, em outro momento, o rei da França revela o prazer de ficar perto da luz das janelas, mas não muito, porque pode ser perigoso. Estes diálogos e embates humanos têm sua potência reforçada pelo trabalho estupendo de iluminação, enquadramento e profundidade de campo.

Além da estética sedutora, O Rei impressiona por construir a figura de um anti-herói, o rei apesar de si próprio. Hal é um jovem rebelde, sempre embriagado, e destituído de vocação para gestos de bravura. No entanto, em consequência à morte do pai e do irmão, herda o trono. Concentrando-se na Batalha de Azincourt, em 1415, Michôd poderia privilegiar apenas o caráter épico deste episódio histórico excepcional, quando o exército inglês, em número inferior, conseguiu vencer o grande efetivo de soldados franceses. Mesmo assim, o roteiro escrito por Michôd e Joel Edgerton prefere se focar nos bastidores da guerra, ou seja, nos motivos pelos quais as pessoas entram em batalhas, e de que maneira o fazem. A narrativa é essencialmente movida por provocações e brigas entre homens de poder, razão pela qual a estética se torna tão preciosa num filme de 140 minutos. Seria fácil cair num falatório entediante, mas a montagem ágil, a precisão das imagens e o teor mordaz das falas sustenta um enfrentamento tão longo.

Historicamente, o roteiro avança um fato conhecido: sabe-se que a Inglaterra entrará em guerra contra a França, mas convém compreender por que meios um jovem indiferente a questões políticas abraçaria com tamanho fervor a decisão de partir, ele mesmo, no campo de batalha. O drama critica então o circo do poder, os pretextos mentirosos que levam nações inteiras a se digladiarem, as desculpas forjadas para incentivar a sede de sangue do alto escalão, e a maneira como as noções de masculinidade e honra são forjadas no enfrentamento. “É assim que se fabrica a paz: na vitória”, argumenta um conselheiro do rei, diante da pilha de cadáveres pós-guerra. Ou talvez se devesse perguntar: paz para quem? Qual é o limite da satisfação pessoal no destino de populações inteiras? Michôd expõe muito bem o jogo de xadrez entre reis, condes, conselheiros e bispos, sem cair num maniqueísmo fácil. Hal, bem-intencionado e corajoso, porém um tanto ingênuo nas questões de liderança, deixa-se levar pelo ímpeto guerreiro alheio.

O elenco contribui muito para o sucesso da empreitada, ainda que apresente prestações desiguais. O perigo de se afastar tanto da contemporaneidade consiste em oferecer um fetiche do passado, um teatro de falas empostadas, roupas arrumadas demais, gestos muito nobres e ensaiados. Ora, a direção toma cuidado para que estas pessoas, ainda que verossímeis no contexto do século XV, não se tornem caricaturas de reis nobres e vis conselheiros. Timothée Chalamet, de olhos marejados ou enraivecidos, demonstra o talento necessário para o papel, justificando seu crescimento meteórico no cinema dos últimos anos. Do adolescente egoísta ao monarca tirânico, ele é capaz de emprestar a mistura de audácia e imaturidade, trabalhando bem as modulações da voz e explorando, neste caso, o corpo franzino a seu favor. Edgerton, oferecendo a si mesmo o papel do combatente extrovertido e clownesco, fornece um bom contraponto ao rei casmurro. No entanto, por mais talentoso que seja Robert Pattinson, ele se revela uma escolha questionável para o príncipe herdeiro da França, com um sotaque pouco convincente e uma composição exagerada, beirando a loucura. Lily Rose-Depp e Thibault de Montalembert, em poucas cenas cada um, oferecem um desempenho impressionante no confronto simbólico entre França e Inglaterra.

A certa altura da trama, O Rei parece incorrer em todos os problemas que vinha denunciando até então, em especial o prazer da guerra pela guerra e a conversão de jovens complexos em heróis românticos. A aguardada batalha entre os dois países, filmada com um esmero impressionante por Michôd e Arkapaw – a câmera mergulha na lama com os soldados, filma decapitações em longos planos abertos – sugere que Hal, enfim, se tornará um líder incorruptível com prazer pelo sangue, ainda que em nome do bem. Mesmo um discurso encorajador, do tipo mais convencional possível, irrompe às vésperas da batalha. Este gosto amargo é felizmente dissipado pelo terço final da história, quando os roteiristas demonstram mais uma vez que o interesse não se encontra no confronto propriamente dito, e sim em suas causas e consequências. O suposto prazer da vitória de Henry V, ou Henrique V, como ficou conhecido em português, é atenuado por descobertas sobre as circunstâncias exatas do combate. O rei corajoso não era, afinal, um líder tão autônomo quanto pensava, tendo sido manipulado pela ânsia de se provar digno ao olhar dos outros. O irônico final feliz em que nada está definido de fato – são propostos casamentos acessórios, pactos falsos, dentro de guerras não concluídas – serve a escancarar a artificialidade da guerra, algo tão pertinente em 1415 quanto seis séculos mais tarde.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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