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Sinopse

Um casal foge à guerra civil no Sudão do Sul e encontra abrigo na periferia de Londres. Durante a travessia de barco, eles perdem a filha pequena em alto mar. Dentro da grande casa vazia onde são colocados, eles começam a suspeitar de que trouxeram consigo um apeth, entidade sobrenatural que deseja acertar contas com os dois sobre atitudes do passado.

Crítica

No cinema, o imaginário sobre casas mal-assombradas está repleto de mansões gigantescas, casarões em meio à natureza, imóveis herdados durante várias gerações. Ao contrário dos demônios que adoram possuir garotinhas virginais, os fantasmas ostentam uma natureza aristocrática, escolhendo arquiteturas gigantescas para suas aparições. Quantas vezes você já viu casas assombradas em favelas, ou em conjuntos habitacionais na periferia? Aos poucos, o terror contemporâneo está retirando o gênero de sua configuração idealizada para aproximá-lo da classe média, no entanto, a maior parte dos filmes ainda passa longe das moradias populares. O primeiro elemento que chama a atenção em O que Ficou para Trás (2020) diz respeito ao caráter social do cinema de gênero: desta vez, as figuras perseguidas por uma entidade sobrenatural não são barões e seus descendentes, e sim um casal de sudaneses do sul, recém-imigrados em Londres. O local onde habitam é espaçoso para os padrões da cidade, porém velho, sujo e vazio. Bol (Sope Dirisu) e Rial (Wunmi Mosaku) precisam permanecer na casa atribuída pelo Estado, sem trabalhar. De certo modo, os verdadeiros fantasmas da história são os dois.

Outra pergunta vem à mente: fantasmas assombram lugares ou pessoas? Por que estas figuras invisíveis e incorpóreas, capazes de atravessar paredes, permanecem presas aos locais, podendo vagar mundo afora? O cinema de terror costuma responder a esta questão através de uma forte conexão do espírito com o local onde se encontra (onde a pessoa foi morta, por exemplo). Este fator se revela particularmente interessante no caso da produção britânica onde o exílio possuem papel fundamental. Ao invés de encontrar os seres malignos na casa nova, a dupla os carrega consigo na viagem. Neste sentido, a fuga se torna impossível: o mal está dentro deles. Esta opção permite que os apeths, ou “feiticeiros da noite” que assombram Bol e Rial, se convertam em metáforas para as perdas que enfrentam: primeiro, a morte da filha pequena na fuga clandestina, e segundo, o abandono das raízes culturais para se integrarem numa Europa pouco amistosa. No papel de um agente de imigração, Matt Smith sugere à dupla o máximo esforço de integração para terem seus documentos efetuados com rapidez. Mas como se integrar numa vizinhança racista? As criaturas que acompanham Bol e Rial representam o fantasma da filha morta e o fantasma de uma cultura exterminada pela guerra civil.

“Imagens não podem me machucar, imagens não podem me machucar”, o homem repete a si próprio diante da aparição violenta. O que Ficou para Trás efetua uma bela evocação das imagens enquanto provas de existência. Para a Inglaterra, a permanência discreta dos sudaneses se traduz numa virtude (o agente sugere que fiquem “invisíveis” na comunidade, e uma garota usa a entrada da propriedade para fazer xixi). Eles não possuem fotos da filha, por motivos que compreenderemos mais tarde, e são obrigados a queimarem os seus pertences, nos quais talvez tenha se prendido o apeth. (Ora, uma vez mais, os fantasmas se prendem às coisas ou às pessoas?). A dupla se encontra dentro de uma casa sem personalidade, de paredes descascadas, onde dificilmente conseguem conqustruir um lar. Eles recebem uma ínfima quantidade de dinheiro do Estado para compensar a proibição de trabalhar. A produção efetua um retrato potente da suposta gratidão que os exilados devem apresentar ao lugar onde são acolhidos, compreendida pelo dever tácito de aculturação. Sem as roupas de seu país, sem o costume de comerem com as mãos, sentados no chão, e sem a língua natal, o que resta de Bol e Rial? Após queimarem a pouca bagagem, os dois cortam os laços com a África. Há muitos lutos a efetuar neste acolhimento agridoce em solo europeu.

Quando o terror se instala na trama, o diretor Remi Weekes faz o possível para utilizá-lo enquanto ferramenta política. De fato, as aparições infantis possuem a forma de pequenas crianças africanas com máscaras tribais, ao passo que o vilão principal adquire a forma de um monstro branco de olhos azuis. As paredes destruídas em instantes de paranoia constituem a demolição necessária para ambos construírem sua própria casa no lugar. É impossível transpor duas pessoas a outro país sem esperar que levem consigo sua história, sua visão de mundo e sua cultura, sugere o filme. Aos poucos, o local se torna cada vez mais ameaçador: o cineasta investe em sequências de pesadelo, pouco originais em sua construção (as águas do mar, a casa em pedaços), porém eficazes e discretas no uso de efeitos visuais. Infelizmente, as sensações ainda decorrem excessivamente de recursos gastos como a luz que se apaga, as portas rangendo, as paredes mutáveis, a voz que sussurra. A montagem se apoia na lógica dos sustos para criar ritmo, o que prejudica a emancipação deste filme em relação às produções comerciais de terror. No entanto, algumas simbologias são bem empregadas, a exemplo da boca-buraco na parede, e da casa representando tanto a proteção quanto uma prisão (algo bastante pertinente durante a pandemia de Covid-19).

Em paralelo, Weekes e o diretor de fotografia Jo Willems efetuam um trabalho elegante e coeso de ambientação. Eles se incumbem do desafio de criar medo, sombras e sugestões dentro de uma casa sem móveis, com poucas fontes diegéticas de luz (lâmpadas, abajures, janelas). Assim, os criadores despertam tensão durante o dia por meio de sonhos – afinal, os personagens carregam as trevas dentro de si. A câmera se aproxima lentamente dos personagens durante as crises (seria o olhar de espectador estrangeiro o verdadeiro perigo aos imigrantes?), alternando com maestria entre o ponto de vista do homem e aquele da mulher. Sope Dirisu aposta numa composição maneirista e tragicômica, apropriada aos filmes de Jordan Peele, já Wunmi Mosaku encontra no drama a raiz do terror, manifestando uma infinidade de sentimentos diante da situação inóspita. Enquanto os pesadelos do marido são violentos e espetaculares, aqueles da esposa são melancólicos – de certo modo, ela aceita a intromissão sobrenatural. As cenas em que Rial observa tranquilamente as figuras ao seu redor e depois conversa com mulheres do vilarejo constituem duas preciosidades dentro da narrativa fantástica. Em sua conclusão, o diretor prefere expandir os significados a restringi-los. O desfecho pode ser lido de diversas maneiras, e melhor assim: a experiência se encerra com uma ampla metáfora sobre o coletivo, ao invés de uma promessa ingênua de conciliação.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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