Crítica


3

Leitores


3 votos 7.4

Onde Assistir

Sinopse

A amizade incomum entre uma imigrante sem documentos, perdida de seu grupo em viagem para os Estados Unidos, e um veterano norte-americano que constrói seu próprio muro de lixo no deserto. Contornando as polêmicas políticas de imigração e a barreira, a trama se desenrola como uma fábula, focando no elemento humano no centro de tudo.

Crítica

Apesar do foco brasileiro no muro separando os Estados Unidos do México, o título original não faz qualquer referência a esta divisão. Dustwun é o termo utilizado no exército norte-americano para militares que se separam do batalhão durante um conflito, sendo considerados desertores. A tradução efetua uma mudança de foco considerável: pelo ponto de vista original, o protagonista desta história é Kenny (Shane Dean), veterano da invasão ao Afeganistão e vítima de stress pós-traumático, ao invés da mexicana Marta (Crystal Hernandez), que tenta atravessar a fronteira. A tradução nacional busca uma equivalência entre os dois lados, inexistente no posicionamento da diretora Genevieve Anderson. Ela observa o tema da imigração pelo lado norte-americano, tendo como personagens três vigias locais e uma única forasteira. A câmera permanece junto à casa de Kenny, acostumado à rotina entediante e solitária. Mesmo quando a mulher mexicana se aventura rumo à fronteira, a câmera a acompanha durante pouco tempo, logo voltando ao território do sargento, com sua bandeira norte-americana hasteada ao vento.

A cineasta assume o caráter fabular desde o princípio, quando introduz a figura de uma narradora literária, dirigindo-se ao espectador para dizer que “nosso conto é uma miragem”. Mais tarde, esta voz dirá: “nossa fábula acaba aqui”. A mexicana sofredora e o estadunidense truculento devem representar seus respectivos países, sem qualquer traço de personalidade capaz de torná-los singulares. Desconhecemos o passado de Marta, os planos para a travessia, a estratégia para conseguir dinheiro rapidamente no país vizinho a ponto de custear a cirurgia do filho. Em paralelo, ignoramos o histórico do militar em combate, e as razões que o levaram a se isolar numa espelunca no meio do nada. Ele já teve família? Ocupou outros postos de trabalho antes? O que o conduziu a esta parte específica do território? Para Anderson, importa apenas que sejam uma mater dolorosa, resumo do imaginário da pobreza mexicana, e um norte-americano bruto, patriota, destinado a defender a sua terra. Em outras palavras, eles se tornam estereótipos – o que não constituiria nenhum problema em si, caso o roteiro estivesse disposto a subvertê-los ao longo da jornada.

No entanto, a narrativa gira em círculos, quase literalmente. Marta está desesperada para chegar aos Estados Unidos o quanto antes, porém se mostra incapaz de andar em linha reta. Ela percorre poucos passos e, exausta, volta ao local anterior. O acampamento de Kenny, que aceita escondê-la das autoridades, se torna o ponto de partida e de chegada diário desta mexicana excessivamente frágil, lamentando sua própria condição. Kenny ameaça procurar por imigrantes ilegais, porém evita se afastar do muro simbólico, de poucos metros de extensão. Os dois patrulheiros, Clark (Jill Remez) e Esposito (Andy Martinez Jr.), jamais perseguem qualquer invasor, somente alertam um ao outro quanto aos possíveis perigos. O filme se repousa sobre promessas frustradas, seja a tensão da travessia, o perigo da descoberta de Marta, as notícias ruins sobre o filho doente etc. A cineasta cria um ponto de partida interessante, espécie de xadrez simbólico (uma mexicana, dois policiais e um militar enlouquecido), porém hesita sobre o movimento das peças, acreditando que a simples disposição destas sobre o tabuleiro baste enquanto mensagem política. O projeto tem pouquíssimo a oferecer sobre as temáticas da imigração e dos traumas de militares, preferindo lamentar o destino de ambos, e torcer para que a situação mude no futuro.

A iniciativa modesta poderia resultar num drama de personagens comovente caso as deficiências técnicas não chamassem tamanha atenção a si mesmas. O Muro constitui um projeto de baixíssimo orçamento, com evidente dificuldade de propor soluções criativas aos dilemas de produção. As cenas são marcadas pela luz superexposta, a câmera tremendo na mão sem definir ao certo o que enquadrar, nem com qual profundidade (a escolha de objetivas é caótica). O trabalho de maquiagem, figurino e penteado jamais convence sobre o esforço físico de Marta, nem sobre o estado de abandono de Kenny. Há problemas graves de edição, quebras de eixo, desníveis de som e de cores. As aparições da Virgem Maria beiram a comédia pela artificialidade dos efeitos visuais, enquanto a cineasta encontra uma única solução para meia dúzia de passagens de tempo: as nuvens aceleradas desfilando pelo céu, somadas à imagem de algum inseto na terra seca. Para um projeto voltado essencialmente ao encurtamento do tempo (a urgência de Marta em chegar aos Estados Unidos) e o alargamento do espaço (a noção de uma terra a perder de vista), a cineasta não trabalha nenhum dos dois aspectos de maneira minimamente eficaz.

Resta um longa-metragem de aparência amadora, decorrente das limitações da mise en scène ao invés das restrições financeiras. Os atores estão exagerados em seus papéis, proferindo falas artificiais com expressões afetadas (os gritos do pesadelo de Kenny, os suplícios de Marta aos céus). O filme busca efetuar uma aproximação entre os aliens (os imigrantes ilegais no jargão administrativo norte-americano) e os extraterrestres, através da fascinação do militar por ufologia. Infelizmente, a metáfora permanece na superfície, culminando na cena embaraçosa em que ambos imitam os gestos do E.T. de Spielberg (o famoso “E.T. phone home”). O muro, elemento fundamental para a discussão sobre políticas migratórias durante a era Trump, tampouco se converte num símbolo expressivo dentro da história. Ao final, a direção sequer explora o que Marta e Kenny sentem um pelo outro, entre amizade, amor romântico ou demais possibilidades de afeto. Anderson tem pouco a dizer sobre estas pessoas, países ou temas. Ela se contenta em lançar arquétipos numa jornada de autodescoberta, sem saber qual moral, mensagem ou reflexão extrair deste encontro. O slogan oficial, “Não existem muros no coração humano”, apenas comprova o quão distante o projeto se encontra de uma discussão sociopolítica relevante.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *