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Sinopse

Harry vive com o pai na costa de Block Island. Ele começa a suspeitar que o homem idoso sofre de sonambulismo, ou talvez de alguma forma de demência. Quando o problema se agrava, Harry se preocupa de talvez estar seguindo o mesmo caminho do pai. Enquanto isso, os peixes e pássaros na região começam a morrer, sem explicação. Conforme os moradores se aventuram pelo mar em busca de explicações, encontram uma resposta inesperada.

Crítica

O Mistério de Block Island (2020) faz uma apresentação fascinante de seu personagem principal, Harry (Chris Sheffield). Numa das primeiras cenas, ele escuta as teorias conspiratórias do amigo com impaciência, tornando-se a voz da moderação entre amigos delirantes. Em seguida, no entanto, a sobrinha Emily (Matilda Lawler) o descreve como o “tio filho da puta”, tese corroborada pela mãe da garotinha. De repente, ele passa a ser um sujeito propenso a exageros e alucinações. Algumas pessoas descrevem um aproveitador, garoto-problema interessado na herança familiar. Outros enxergam nele um sujeito frágil, o único filho disposto a cuidar do pai doente. Antes de assumir o protagonismo, este sujeito é construído pelo olhar fragmentado de terceiros. O roteiro está repleto de insinuações deixadas em aberto: o romance entre a bióloga Audry (Michaela McManus) e o funcionário Paul (Ryan O’Flanagan), o abuso do avô com a neta em casa, a ameaça de um pequeno animal colocado dentro de um jarro. Os diretores Kevin McManus e Kevin McManus se divertem em plantar uma infinidade de simbologias, algumas delas jamais desenvolvidas.

O conflito principal adota o mesmo princípio. Há duas catástrofes ocorrendo em paralelo, de origens igualmente misteriosas. Na esfera privada, o pai de Harry sofre de algum distúrbio psíquico. O filho fala em sonambulismo, embora seja evidente a existência de problemas mais graves. Na esfera pública, os animais da região são exterminados às toneladas. Os peixes aparecem mortos, as aves mergulham de cabeça no chão. Fala-se na morte de gatos, nas contaminações por parasitas e na toxoplasmose. O texto busca evidências científicas para os dilemas simultâneos, ainda que as justificativas sejam insuficientes aos personagens: a tese de sensibilidade ao eletromagnetismo é recebida com ceticismo pelo herói, e a ideia de uma intoxicação dos animais tampouco rende frutos. A trilha sonora perturbadora e as atuações antinaturais bastam para nos aproximar do horror. No entanto, o texto mantém os pés fincados no real. Curiosamente, o cientificismo se bloqueia: laudos médicos revelam-se inconclusivos, autópsias falham em determinar a causa da morte, biólogos desistem de efetuar análises de dados para determinar o mistério natural. A racionalidade pede passagem, mas recebe um não como resposta.

Isso ocorre porque os fenômenos são utilizados principalmente enquanto metáfora do estado de espírito de Harry. Algumas possibilidades complementares de leitura são possíveis: 1. O extermínio dos animais representa uma materialização do estado depressivo do protagonista. Visto que a trama é narrada por seu ponto de vista, a percepção de um mundo desmoronando se transforma literalmente no cenário distópico. 2. O filme representa a dificuldade em efetuar o luto. Incapaz de lidar com a morte do homem muito parecido com ele, e cujos passos profissionais vinha seguindo, o rapaz projeta seus traumas no vilarejo. Ou seja, ao invés de exteriorizar as dores próprias, Harry passa a enxergá-las nos arredores. 3. O projeto permite ao espectador observar a vida pelo prisma de uma pessoa perdendo o senso de realidade. Neste sentido, a manifestação do horror se converte em percepção, mas não em fatos. A excelente cena final aponta para esta direção: estamos assistindo a uma versão da morte pelo filtro das alucinações deste homem. Por isso, as tragédias ecológica e familiar se unem nos diálogos, dentro da mesma frase: “Pássaros mortos na água. Peixes mortos na água. Seu pai na água”, resume o colega adorador de teses persecutórias.

O Mistério de Block Island proporciona uma experiência potente pela capacidade dos irmãos McManus em articular sugestões. Seria fácil se encaminhar a um desfecho onde o fenômeno dos animais e do comportamento do pai seriam explicados por alguma solução natural ou sobrenatural. Ora, os criadores plantam hipóteses nos dois sentidos, mas preferem deixar o espectador sua escolha de leitura. As cenas explicitamente fantásticas são orquestradas de modo que as sombras dificultem a interpretação, e a mixagem de som confunda nossos sentidos (vide o clímax dentro do barco). Os cineastas percebem que o medo decorre de nossa capacidade de identificação com os personagens, por isso dedicam pelo menos metade da narrativa à descrição psicológica de Harry e Audry. Assim, o pragmatismo da cientista e as conspirações do irmão alcoólatra soam plausíveis. Ao invés de criar monstros, bruxas ou fantasmas, o filme prefere aproveitar o terror plausível do sonambulismo, da amnésia e dos delírios, em outras palavras, da perda da consciência. O terror não precisa vir de fora, movido por alguma força do mal: ele se encontra dentro de Harry, partindo dele em direção à natureza. Por este motivo, o jovem se torna literalmente o centro da catarse durante o clímax.

Em termos de produção, o resultado impressiona para uma produção de verba limitada. Os atores pouco conhecidos possuem prestações coesas, tanto para o drama quanto para o terror. A pequena Matilda Lawler, em especial, brilha nas poucas cenas oferecidas pelo roteiro. Há pontos mais fracos, sem dúvida, sobretudo o papel acessório de Paul, um biólogo-babá-namorado que surge apenas quando os heróis precisam dele, e a questão mal resolvida com a dupla de policiais. No entanto, os irmãos McManus demonstram a confiança para construir sequências dificílimas, a exemplo do colapso no supermercado e do espectro do pai. Eles demonstram confiança semelhante àquela de Ari Aster e Robert Eggers, no sentido de explorarem o colapso da psique via monstruosidade, sem a necessidade de explicá-la nem de garantir um retorno à ordem no final. Pelo contrário, o filme mergulha cada vez mais no caos, até o brilhante plano de conclusão, interrompido um milésimo de segundo antes de adquirirmos uma informação fundamental quanto ao destino dos personagens. Em tempos de pandemia, o filme também pode ser lido pela perspectiva da deterioração da saúde mental durante o período de isolamento – Harry se nega a sair da casa, embora corra perigo, e traça a morte como marco temporal: “Te vejo no próximo funeral”, dispara à irmã. O projeto se converte num belo ensaio sobre a lucidez, ou ainda um ensaio sobre a coletividade em tempos de crise da razão.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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