Crítica
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Crítica
Tudo começa com um pacto de crença entre cineasta e espectador. O chileno Sebastian Lelio inicia O Milagre com um significativo movimento de câmera que desloca a nossa percepção dos bastidores à cena montada. Nisso, é como se afirmasse: acreditar no cinema o faz existir. Não se trata de um exercício de estilo ou de uma simples brincadeira para revelar o que está por trás. É um gesto de equivalência entre o cinema e a religiosidade no que diz respeito à importância de uma crença mobilizadora. A protagonista é uma mulher cética, exceção incrédula em meio aos personagens que anseiam fervorosamente pela existência do imponderável. Lib (Florence Pugh) é a enfermeira inglesa contratada para fazer parte de uma vigília bastante inusitada. Ela chega ao interior quase inóspito da Irlanda, lugar marcado pelo provincianismo, para fazer parte da investigação sobre o suposto milagre em torno da menina que não se alimenta há meses. A forasteira é inserida nesse contexto como um corpo estranho, pois simboliza um pensamento mais racional e menos simpático ao sobrenatural. Lib se reveza com uma freira, a representante do extremo oposto, ou seja, da fé no inefável como uma filosofia de vida salvadora/redentora. É acompanhando a estrangeira destoante que encaramos os temas abordados, entre eles a torcida a algo que torne a realidade mais palatável. Função que o cinema também pode exercer.
A possibilidade de uma disputa de discursos entre Lib e a freira é rapidamente refutada, pois as regras impedem que as duas conversem. Sebastian Lelio faz dessa impossibilidade de contato uma forma de centrar as atenções na perspectiva da protagonista. O pensamento racional de Lib diverge da tônica dominante, mas a freira não é utilizada como reforço da predisposição local à crença. O único momento em que vemos a irmã falar alguma coisa significante frustra justamente essa ideia de antagonismo, pois ela compreende alguma coisa além dos dogmas religiosos, enxerga o que diz respeito à condição feminina num lugar como aquele. A via crucis é de Lib, a forasteira que cansa de alertar os moradores sobre a situação cada vez mais precária da pequena Anna (Kíla Lord Cassidy, numa atuação marcante). Ela tem certeza de que a menina não é sustentada pela benevolência divina, mas tampouco encontra explicações concretas para os acontecimentos inexplicáveis em torno dela. Há margem para incertezas. Sebastian Lelio trabalha habilmente com a dúvida a fim de manter durante certo tempo o enigma, como em A Palavra (1955), dirigido pelo dinamarquês Carl Thedor Dreyer, uma espécie de emblema desse cinema do milagre. A força da fé advém da entrega ao não atestado e aos mistérios persistentes. A potência da crença vem dessa perseverança do insondável como instância digna de adoração.
Ao menos um personagem de O Milagre poderia ser melhor desenvolvido dentro desse jogo que antagoniza, sobretudo, a forasteira esforçada em não acreditar e os nativos motivados por crenças inabaláveis. O jornalista Will (Tom Burke), nascido naquela localidade, mas morador da cidade grande, poderia funcionar como um elo ambivalente entre essas divergências de origem e abordagem filosófica. No entanto, o roteiro escrito por Emma Donoghue, Sebastián Lelio e Alice Birch prefere o situar como um provocador que instiga a erupção de questões internas da protagonista. De todo modo, o homem é central num par de momentos fundamentais dessa trama que, a despeito do pacto de crença estabelecido desde o início, vai sendo direcionada às certezas. Aliás, o ponto fraco da abordagem de Sebastian Lelio é o gradativo esclarecimento das verdades materiais em torno dos inúmeros questionamentos sobre imaterialidade, ou seja, a confirmação de uma das teses que pode elucidar o que desvendaria o segredo. Mas, se por um lado, os desdobramentos diminuem a incerteza como um elemento do discurso, por outro, direcionam a trama para a observação da opressão feminina justificada pelos dogmas religiosos. No fim das contas, Anna é uma grande vítima levada à tentativa de purgar os seus demônios físicos e psicológicos por meio de um sacrifício ritualístico com verniz celebrado de dádiva divina.
Dentro dessa lógica de criar um paralelo entre a representação cinematográfica e o milagre em termos de crença – é preciso acreditar em ambos para nos engajarmos de corpo e alma –, Sebastian Lelio ainda cozinha outras perspectivas e componentes: a mãe que conta uma história embasada nos escritos sagrados para defender o sacrifício; os papeis que cabem a cada um dos participantes desse grande teatro que é a investigação da comissão; a disputa velada entre a fé (freira) e a razão (enfermeira); a forma como o enredo é encarado pelas pessoas envolvidas. Vidrados em mais uma interpretação visceral da talentosa Florence Pugh, somos levados por um caminho menos ambivalente do que seria possível imaginar tendo em vista a quebra inicial da ilusão do cinema. Porém, talvez esteja nisso a chave para compreender as intenções do longa-metragem que ainda conta com ótimas fotografia (de Ari Wegner) e direção de arte (de Grant Montgomery). Mesmo depois de o cineasta escancarar a natureza falsa (“tudo não passa de um filme”), somos convidados nos comprometer com a lógica cinematográfica, torcendo por A ou B, na expectativa sobre o que vai acontecer. Seria então isso também aplicável à fé, ou seja, ela independe da obtenção de uma “verdade” mundana, de fatos, estando associada ao desejo de acreditar? Revigorante assistir a um filme que não oferece respostas, mas perguntas instigantes.
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