Crítica


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Sinopse

Por conta de contingências da vida, um menino precisa ir morar com a avó na África do Sul. Lá, ele começa a ler cartas para os moradores locais, isso antes de ser atravessado por uma paixão inesperada.

Crítica

O curta-metragem apresenta um início dos mais promissores. Um carro se desloca pelas estradas da África do Sul e, sem uma palavra sequer, somos introduzidos ao conflito central do filme. A expressão de descontentamento do garoto deixa muito claro que não está feliz com a viagem, enquanto os tons bucólicos da paisagem dessaturada e a trilha sonora de jazz melódico reforçam a ideia de uma jornada triste, contra a qual não adianta lutar. A atuação dos pais, no banco da frente, transmite a firmeza de uma resolução tomada. A abertura consiste na melhor parte da narrativa do diretor Sibusiso Khuzwayo, graças à capacidade de introduzir seu tema apenas por recursos de linguagem, confiando na dedução do espectador, enquanto elementos não indispensáveis são retirados de cena. Teria sido muito mais fácil revelar por meio de diálogos os motivos exatos do trajeto e as razões pela irritação do menino, mas este teria sido um caminho menos prazeroso. Afinal, estamos falando de um filme sobre jornadas, e aquela fornecida ao espectador se torna tão importante quanto o caminho percorrido pelo protagonista.

O drama se constrói em tornos dos ritos obrigatórios do amadurecimento. Sem a supervisão dos pais pela primeira vez, o menino descobrirá o mundo cruel dos adultos, sua primeira desilusão amorosa e o poder do conhecimento num vilarejo de analfabetos. Mesmo lendo pouco, ele se torna o leitor oficial de cartas aos moradores, o que também lhe confere a habilidade de alterar histórias à sua conveniência. A pequena malícia desta fábula consiste em conferir ao garoto o potencial de se tornar um contador de histórias (ele se transforma, simbolicamente, no diretor de sua narrativa), criando e modificando vidas alheias. Este conflito poderia resultar num conto perverso, mas o diretor mantém as rédeas da trama em tons adocicados. O único motivo que leva o menino a adulterar o conteúdo das cartas diz respeito ao amor romântico por uma mulher mais velha. O delito, portanto, é justificado pela paixão platônica e impossível. O Menino que Lia Cartas (2019) adquire a aparência de um filme de férias, onde se experimenta situações incompatíveis com o cotidiano, centradas em romances furtivos que jamais renderão frutos no futuro. No entanto, o discurso estima que estes mecanismos voláteis do amor e da desilusão sejam fundamentais ao crescimento individual.

O cineasta embala a narrativa em tons de conto de fada. A astúcia da sequência inicial é substituída por uma condução mais linear e cronológica. Por um lado, a produção impressiona pela beleza da direção de fotografia, os planos fixos e seguros, a iluminação tão nostálgica quanto verossímil dentro das casas. Por outro lado, a trilha sonora introduz uma quantidade excessiva de canções, quando o término de uma melodia serve de início à próxima. Consequentemente, atinge-se um efeito artificialmente atenuado. Khuzwayo observa o mundo inteiro pelos olhos do garotinho ingênuo, além de demonstrar medo de provocar alguma ferida mais profunda em qualquer personagem. Haveria óbvias tensões políticas entre a cidade rica e o campo pobre, entre os homens poderosos e as mulheres submissas, entre a tradição e a modernidade. Ora, nenhuma dessas questões se aprofunda. Qualquer alegria ou tristeza é amenizada até se atingir um teor agridoce, um meio-sorriso perene ao longo da experiência. Felizmente, o ator mirim demonstra preciosa capacidade de transitar neste registro, a exemplo da cena em que passa da chacota à tristeza, gradativamente, dentro de um mesmo plano. O cineasta demonstra fino trato com os atores, estabelecendo um tom uniforme nas composições.

Para o bem ou para o mal, O Menino que Lia Cartas defende a virtude da ignorância, ou ainda a fuga da realidade através da fantasia. Nesta história o conhecimento traz poder, mas não garante felicidade. Ao invés de receber notícias ruins, é melhor imaginar outras, muito mais ternas, ainda que falsas. O menino busca proteger sua amada ao modificar o tom agressivo dos textos lidos, algo percebido pelo filme como um ato de gentileza ao invés de uma manobra manipuladora. Pobres mulheres da história, sempre dependentes da vida que os homens constroem para elas. O desfecho acena suavemente ao rompimento das ilusões, porém sem as consequências esperadas de tal descoberta. O filme pode ser abraçado ou rejeitado pelos mesmos motivos, no caso, a abordagem inofensiva - ou seria conformista? - de uma trama sobre questões graves. Diante da dureza cotidiana, o melhor caminho seria imaginar uma escapatória, custe o que custar? O cinema defende sua vocação de elogio ao imaginário, de escapatória por meio da ficção, entendida enquanto análoga à mentira. O curta-metragem se revela tão carinhoso quanto ingênuo, apostando numa visão de mundo muito particular sobre o mundo e sobre o cinema.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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