Crítica


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Sinopse

Com o intuito de conectar seus alunos com outra realidade, uma professora utiliza Ayahuasca. Durante o exercício ritual, uma das crianças encontra uma enigmática engrenagem na floresta.

Crítica

O Jardim Fantástico (2020) possui uma maneira curiosa de adentrar a fantasia. O universo mágico está presente desde o título até a última cena, passando por letreiros sobre o efeito do chá de Ayahuasca, criaturas na floresta e mecanismos metálicos jogados pela natureza. No entanto, os diretores Fábio Baldo e Tico Dias adentram este universo com discrição e calma, como se pedissem licença para introduzir o mínimo elemento não-naturalista. Percebe-se a precaução em fazer com que o transcendental não provoque uma ruptura no realismo: ele surge aos poucos, sem provocar sobressaltos aos personagens nem gerar conflitos na narrativa. Talvez por este motivo, o acesso ao cinema de gênero provenha de meios ou totalmente analógicos, ou claramente acessórios. O homem-chroma-key, uma figura esverdeada tão natural (ele possui a mesma cor das folhas ao redor) quanto artificial (trata-se claramente de um homem numa fantasia verde), transforma-se por meio de uma projeção ao mesmo tempo absurda (ele contém o universo dentro de si) e lúdica (trata-se de uma projeção digital sobre a tela esverdeada de seu corpo). As peças encontradas na floresta, funcionando enquanto convite à magia, constituem um recurso mecânico que poderia ter vindo de um relógio qualquer.

O elemento de maior aproximação entre a urbanidade contemporânea (representada pela figura de duas mulheres evangélicas, lendo a Bíblia à moradora de uma casa) e a concepção de mundo indígena, sempre muito cara aos cineastas, encontra-se na maneira fluida e quase imperceptível com que o irreal se impregna pelas frestas do real. A natureza torna-se uma extensão da sala de aula (algo explicitado pelo belíssimo cartaz do filme), ao passo que o chá de Ayahuasca não se desenvolve dentro de um ritual propriamente dito. A professora e seus alunos sempre se encontram ao mesmo tempo dentro da sala e aula e fora dela. A magia existe e inexiste simultaneamente, ou melhor, ela se manifesta sem qualquer senso de espetáculo. A criatura aparece para poucas pessoas, o saco-de-dormir-chroma-key torna-se útil no encontro afetuoso entre duas pessoas. A busca pela fantasia desafetada, indiferente a seu potencial disruptivo, se propaga por todos os aspectos estéticos: a iluminação leitosa e impecável na sala de aula, as roupas novíssimas dos alunos, como recém-saídas da loja, os cabelos arrumadíssimos, as casas sem um elemento fora do lugar. Não há barulhos durante uma aula com crianças, não há atritos no lar da professora. Quando um aluno aparece, aparentemente sem ser convidado, nenhum dos dois manifesta qualquer surpresa. As atuações são igualmente despossuídas, antinaturalistas, ao limite da performance para Zahy Guajajara, e com falas excessivamente decoradas para as crianças.

Esta construção provoca um efeito posado, bastante rígido. A natureza, o Ayahuasca, a fricção entre cidade e floresta, ou entre tradição indígena e conversão evangélica abria possibilidade de inúmeras viagens estéticas, com movimentos de câmera rebuscados, cortes bruscos, alterações de cor, brincadeiras com profundidade de campo etc. Nada disso ocorre neste filme de torpor permanente, onde se a câmera se delicia com os cabelos impecavelmente escovados das meninas e das mulheres, com as roupas brancas demais dentro da floresta, com a professora virando-se cuidadosamente para não fugir ao enquadramento proposto. Aqui, os corpos condicionam-se às vontades da direção, e não o contrário. Os personagens se adequam a uma vontade estética prévia, enquanto a direção de fotografia acompanha atenciosamente cada pequeno movimento dos rostos, ajustando-os aos terços adequados da composição clássica. É muito interessante a maneira como a fantasia, compreendida enquanto fuga do real e transbordamento de limites, encaixa-se dentro de balizas tão rigidamente autoimpostas.

Rumo ao final, não há clímax, nem a impressão de que a trama nos conduz a algum desfecho preciso. Esta delicada caixa de música, muito bem produzida e concebida, poderia explodir (ou implodir) por algum meio estético ou narrativo. Entretanto, preserva-se no limiar da sugestão, na textura de algo que pode ou não ser real, pode ou não constituir um sonho embriagante, etéreo e confortável. A ideia de conforto poderia resumir bem a surpresa diante da obra: enquanto o gênero possui uma vocação natural à perturbação dos sentidos e da norma, Dias e Baldo privilegiam um registro de interações sem conflito, com florestas sem perigos, casas sem problemas, criaturas fantásticas que nos abraçam e sacos de dormir propondo um retorno carinhoso ao útero. Os diretores não demonstram qualquer prazer em expor seus personagens a quaisquer violências. Por isso, as mulheres evangélicas não incomodam a professora, e o contato com a criatura sobrenatural assemelha-se a uma banalidade. “Não deixa ele se aproximar”, sussurra uma criatura protetora usando uma Gopro na cabeça (novamente, um encantamento analógico), ao que a professora responde: “Eu não estou mais no controle”. Simples assim. A magia existe, e não adianta lutar contra ela, nem tentar usá-la em nosso favor. Ela apenas existe ao redor, de maneira autônoma e livre, apesar de nós – assim como a natureza.

Filme visto online no 31º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo – Curta Kinoforum, em agosto de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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