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Sinopse

Cantão de São Sernin, França, 1798. Três caçadores acham uma criança, com 11 ou 12 anos, que nunca teve contato com a civilização. Ele é apelidado de Selvagem de Aveyron, pois se alimenta de grãos e raízes, não anda como um bípede nem fala, lê ou escreve. O professor Jean Itard se interessa pelo menino, que é levado a Paris para determinar seu grau de inteligência e ver como se comporta. O estudioso começa a educá-lo. Todos pensam que irá fracassar, mas com amor e paciência aos poucos obtém resultados.

Crítica

Não é por acaso que François Truffaut inspirou Steven Spielberg. A famosa infância conturbada e rebelde do francês, que viria a impregnar a maioria de suas obras – cinematográficas e escritas –, talvez possa ser considerada mais “brutal” que a comum separação dos pais de Spielberg, fato que igualmente iria afetar as realizações deste. Porém, é sintomático que o americano tenha se interessado pela carreira de Truffaut principalmente a partir de O Garoto Selvagem, filme que lhe traz tantos pontos importantes. A colaboração deles em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), portanto, é apenas uma consequência dessa identificação temática, feita de infância, rebeldia e afeto paterno.

Enquanto estudo, cineastas de todas as gerações tendem a discutir quaisquer temas que abordem basicamente em dois níveis: o pessoal e o social. E isso não implica em mais ou menos personagens, a divisão acontece quando se faz a interpretação de seu texto e ou subtexto. Truffaut, mais pessoal, flerta aqui com a discussão de nível social ao trazer um roteiro baseado nos estudos do médico Jean Itard, que falava sobre crianças “selvagens”, ou melhor colocado, que não foram educadas nos padrões de civilização da época. Traz, então, o menino Victor (Jean-Pierre Cargol), criado sozinho na floresta, posteriormente levado até Itard (interpretado pelo próprio Truffaut), ele que inicia um complicado processo de ensinamento e aprendizagem com o garoto.

Embora fosse uma obra pronta para se aplicar a contextos sociais mais amplos, é notório que Truffaut enxergue a si mesmo na história supostamente verídica de Victor. Um jovem rejeitado que se torna rebelde quando obrigado a seguir padrões pré-estabelecidos? É fácil substituir Victor por François e Itard por André Bazin – pensador que o adotou na carreira e literalmente em certo momento. Truffaut interpretando a figura paterna é ainda mais curioso, uma vez que nessa posição assume as expectativas que tinha com a própria paternidade. Sem dúvidas, nível bastante pessoal.

Desconhecer o subtexto por trás de O Garoto Selvagem, entretanto, não afeta sua história tão interessante. É uma trama simples, mas eficaz em propor um olhar crítico sobre a educação convencional e o estigma do simplório. Victor se contenta com seu copo de água e a bela vista que tem da janela. Ainda assim, Itard insiste em achar que ele precisa saber falar, ler, escrever, para que possa ser considerado um homem: “não é mais um selvagem, apesar de não ser ainda um homem”, ele diz em certa altura.

Sobre isso, a autora brasileira Marilena Chauí, em seu livro Convite à Filosofia, escreve que existe uma divisão clara do que se entende por cultura: há quem a veja como tudo aquilo que um ser humano acrescenta à sua natureza primordial, portanto, ela seria uma segunda natureza que implica em aprendizagem e elevação; e há quem a perceba como justamente uma oposição a esta natureza, ou seja, a cultura, a educação e o aprendizado não complementam o ser humano, como no primeiro sentido, mas buscam distanciamento e combate deste estado natural. Essas duas vertentes de entendimento aqui são representadas por nossos protagonistas, e sua divergência é o que gera o conflito entre Victor e Itard. Victor busca encaixar aquelas novas lições nas noções que já possui, enquanto Itard tenta suprimi-las, impondo todo em novo contexto ao garoto. O olhar que trocam no último plano do longa-metragem revela exatamente isto: o menino, claro, chegará a algum lugar, mas sua ascendência social será feita aos trancos e barrancos, pelo menos enquanto o ser social não entender que o ser natural não é inferior somente por possuir uma educação diferenciada.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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