Crítica


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Sinopse

A vida do ator Björn Andresen foi drasticamente alterada quando, na juventude, ele foi escolhido para viver Tadzio no filme Morte em Veneza, do diretor italiano Luchino Visconti. Mais de 50 anos depois, isso ainda o persegue.

Crítica

Duas vertentes paralelas organizam a narrativa deste documentário. A primeira delas, evocada no título, diz respeito ao filme Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti, quando o adolescente Björn Andrésen foi escolhido para interpretar o menino por quem um intelectual (Dirk Bogarde) se apaixona. O diretor italiano levou anos em busca do “garoto mais bonito do mundo”, até encontrar o sueco de 15 anos de idade e transformá-lo num ícone mundial. O primeiro terço da trama se dedica exclusivamente a este episódio, revelando materiais raros de making of e questionando a decisão perversa de despir uma criança para os propósitos da câmera. Ele foi utilizado para reforçar a fama de um cineasta poderoso, e então devolvido à vida de classe média-baixa. Os criadores tentam compreender a fascinação do cineasta pelo garoto, e o poder exercido um no outro. A questão ética surge, ainda que de maneira discreta: teria sido uma forma de abuso praticada por adultos sobre um menino? O cinema é responsável pelo impacto das obras na vida dos atores pós-exibição? A conversão de Andrésen em ícone de beleza constitui um caso de erotização da infância? Até que ponto estamos dispostos a tolerar tais atos em nome da arte?

Numa segunda parte, abandona-se a metalinguagem. Passada a associação do protagonista com Tadzio, ele é visto na fase adulta, aos 66 anos, vivendo num apartamento precário e imundo. Os diretores Kristian Petri e Kristina Lindström relembram a ausência do pai e morte trágica da mãe quando ainda era pequeno. Ele sempre teve dificuldade de se relacionar afetivamente com as mulheres, tornando-se, por sua vez, um pai ausente. Neste segmento, Andrésen, o ator, se transforma em Andrésen, sujeito comum envolto em mortes, depressão e incontáveis traumas familiares. Após colocá-lo num pedestal, na condição de ícone idealizado, os cineastas demonstram prazer equivalente em retirá-lo do topo. Eles se focam no apartamento caindo aos pedaços, no corpo envelhecido, no fogão imundo. Ao invés de uma história de redenção, desenham a trajetória de queda, do ápice à beira do anonimato. Nesta parte, o herói vira um sujeito melancólico, carente e solitário. O velho Tadzio não possui fãs, algo frisado com insistência pelo longa. Corredores vazios, música de suspense, cores azuladas e frias reforçam seu estado emocional ao limite da psicopatologia.

O problema se encontra na tentativa de unir os dois movimentos. O Garoto Mais Bonito do Mundo (2021) afirma que seu personagem foi um astro explorado, e depois, explica que se tornou um homem triste, mas teima em encontrar uma relação entre ambos. A associação óbvia seria de causa e consequência: Andrésen teria conhecido a depressão por causa da experiência no clássico de Visconti. No entanto, o roteiro evita este caminho. Outra possibilidade seria de concessão: o protagonista viveria em tais condições apesar do papel famoso, ou seja, teria conquistado certo anonimato e independência após o assédio da mídia. Ora, o longa-metragem tampouco aposta nesta relação. Resta uma mísera sucessão de dados: ele foi famoso, e não é mais (ao invés do “mas”). Petri e Lindström efetuam belo trabalho de descrição, em ritmo agradável e contemplativo. Quando chega a hora da reflexão a partir dos fatos, interrompem o discurso. Morte em Veneza teria destruído a vida do menino? O veterano italiano se converteu numa figura paterna substituta? O menino encontrou nos admiradores adultos o afeto de que foi privado na infância? A vulnerabilidade de ter descoberto o cadáver da mãe o deixou propenso aos abusos? Todas estas teses seriam plausíveis, contanto que bem fundamentadas. No entanto, o filme evita qualquer hipótese de ordem psicológica.

Algo tão impressionante quanto a obsessão da câmera pelo protagonista é o tratamento estético oferecido pelos criadores. Trata-se de uma produção com amplos recursos financeiros, capa de viajar a diversos países, restaurar materiais de arquivo raros, efetuar lânguidos planos-sequência numa sauna, pelas ruas, nas ruínas do hotel utilizado por Visconti. A fotografia efetua um trabalho ostensivo de baixas luzes, como se o herói vivesse num eterno crepúsculo. A melodia da trilha sonora, em pianos tristes e percussões assustadoras, sustenta o aspecto de mistério, enquanto a dissociação total entre voz e imagem, aplicando o som a cenas etéreas do homem nas termas, ou jogado na cama de um quarto de hotel, reforça uma nostalgia evidente por si própria. O cuidado com a luz e os enquadramentos revela tamanha rigidez que o resultado remete a uma propaganda de perfumes, ou a um desfile de moda. A decadência se faz elegante; a miséria emocional é embalada em planos brilhosos e perfeccionistas. A estética vai além da redundância, passando a explorar a dupla sina de Andrésen: a de astro explorado, e de astro abandonado. Conforme a narrativa avança, os choros se multiplicam, os sussurros se fazem mais presentes, e a música capricha no tom lacrimoso. Se inicialmente tentava compreender seu protagonista, aos poucos o documentário passa a ter piedade do mesmo.

O Garoto Mais Bonito do Mundo ainda incomoda pela associação constante entre homossexualidade e pedofilia. Na época do lançamento de Morte em Veneza, o amor platônico da ficção levantou  questionamentos nesse sentido, mas a polêmica se dissipou. Os diretores a retomam com vigor, relembrando duas vezes que o cineasta era gay assumido, assim como toda a equipe, e sugerindo em pelo menos duas oportunidades que Andrésen teria sido violentado pelos profissionais da obra italiana. Caso abusos tenham ocorrido, precisam ser levados a sério, com provas e argumentos contra os responsáveis. No entanto, a insinuação constante e vaga de que, por serem gays, os homens seriam propensos a fazer sexo com um jovem de 15 anos provoca forte desconforto. “É como se, na cabeça deles, estivessem me fazendo um boquete”, explica o homem adulto, numa fala que a montagem faz questão de preservar. Novas afirmações de teor semelhante surgem na trama. A princípio, parte-se da delicada e complexa relação sobre os deveres éticos do cinema e a influência tóxica dos grandes autores. Aos poucos, descola-se do mundo do cinema para investir na espetacularização do sofrimento alheio. O ato de filmar, ao vivo e em close-up, as lágrimas de um sujeito idoso lendo o boletim policial que descreve a morte de sua mãe diz muito sobre a fronteira nada tênue entre empatia e exploração. O projeto contrário à violência de que Andrésen foi vítima não se distancia tanto dos algozes que critica.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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