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Sinopse

Numa viagem ao Uzbequistão, região central da Ásia, Yoko, repórter de um programa de variedades da TV japonesa, inicia uma jornada repleta de desafios e interações com uma cultura a ela estranha. Yoko decide, então, registrar as experiências que mudaram a sua percepção de mundo.

Crítica

Foi no cinema de gênero, em particular no terror, que o japonês Kiyoshi Kurosawa se firmou com um dos principais autores contemporâneos de seu país, criando obras emblemáticas, como A Cura (1997) e Pulse (2001), que ajudaram a propagar o chamado J-horror internacionalmente, sucedidas por títulos como Creepy (2016) e O Segredo da Câmara Escura (2016). Contudo, o trânsito por outras esferas e o gosto pela experimentação sempre estiveram presentes no trabalho do cineasta, muitas vezes ficando aparentes numa mesma narrativa, como na mescla de ficção científica, ação, romance e crítica social pós-apocalíptica de Antes que Tudo Desapareça (2017). Em O Fim da Viagem, o Começo de Tudo, Kurosawa explora ainda outra veia de seu cinema, uma mais dramática, ou melodramática, já encontrada no excepcional Sonata de Tóquio (2008) ou mesmo na jornada espiritual de Para o Outro Lado (2015).

Diferentemente dos últimos exemplos citados, porém, que em maior ou menor escala – um flerte no primeiro e um mergulho completo na fantasia no segundo – ainda apresentavam uma fusão de gêneros, este novo longa de Kurosawa segue por uma linha menos diversa, com um roteiro mais linear e menos rocambolesco do que o habitual para o diretor, retratando o drama mais íntimo e minimalista que envolve a protagonista, Yoko (Atsuko Maeda), apresentadora de um programa japonês de variedades em visita ao Uzbequistão para gravar uma série de reportagens. Entre a tentativa de pescar um mítico peixe gigante e as paradas para provar a culinária local ou visitar pontos turísticos, Kurosawa vai deixando transparecer as angústias de Yoko, como a sensação de desorientação – a personagem já é apresentada acordando atrasada para a filmagem, perdendo a partida de sua equipe: o produtor (Shôta Sometani), o cinegrafista (Ryo Kase), o assistente (Tokio Emoto) e o tradutor uzbeque (Adiz Rajabov).

Esses sentimentos são amplificados pelo estranhamento do país estrangeiro, algo que, inicialmente, Kurosawa retrata através da repetição – no esquematismo da exposição dos pequenos percalços encontrados por Yoko na gravação de cada segmento do programa. O que, num primeiro momento, pode ser entendido apenas como tédio, cansaço ou irritação no comportamento da protagonista, gradativamente se revela uma frustração mais profunda ligada a questões igualmente mais densas que, de alguma maneira, acabam permeando a obra de Kurosawa. Sejam as rupturas nas estruturas familiares – pelas vias da desolação em Sonata de Tóquio ou da psicopatia em Creepy – ou, no caso de Yoko, a incomunicabilidade e a perda do senso de pertencimento, os males da sociedade moderna eclodem nas narrativas do cineasta, sendo aqui trabalhados ora pela metáfora – no desejo de Yoko em libertar a cabra presa no quintal de uma casa, representação do próprio aprisionamento num emprego que a distancia de sua verdadeira vocação, a música –, ora de modo concreto, como quando a personagem acaba sendo detida pela polícia local por filmar em uma área proibida.

A reação intempestiva de Yoko, fugindo dos policiais por não compreender o idioma, remete à já citada questão da incomunicabilidade, bem como ao medo primitivo do desconhecido, do novo. Toda a sequência que sucede o ocorrido, passada na delegacia, serve também para exemplificar a mise-en-scène apurada de Kurosawa, incluindo um trabalho de iluminação sublime, que traduz e potencializa o turbilhão de sentimentos – medo, vergonha, arrependimento – de Yoko ao ser interrogada, e culminando em um momento extremamente comovente. Tal força se repete na passagem em que a repórter recebe o telefonema do namorado no quarto de hotel, com as cores dos letreiros em neon invadindo o local pela janela, assim como na cena do teatro, na qual iluminação, design de som e montagem se complementam magistralmente desde os cortes precisos que transportam Yoko pelas antessalas até chegar à plateia. Momento único em que Kurosawa abandona a realidade para adentrar o terreno fantástico através do elemento musical.

A sequência, de rara beleza, ainda expõe toda a graça e potência da atuação de Atsuko Maeda. Pois O Fim da Viagem, o Começo de Tudo é inteiramente centrado em Yoko, e em seu olhar – e não apenas na passagem literal em que Kurosawa traz as imagens feitas pela câmera da personagem – dependendo da conexão com a personagem e seus dramas para funcionar. Uma conexão que atinge seu ápice no desfecho, retornando ao aspecto lúdico da música para oferecer à protagonista a libertação desejada. “O mar simboliza a liberdade?”, pergunta o tradutor uzbeque a certa altura da projeção, ao que Yoko responde não saber. “Dizem que é um lugar perigoso. Nada a ver com liberdade”. É a constatação de que a liberdade não vem sem riscos que Kurosawa oferece, algo que Yoko parece finalmente disposta a aceitar e abraçar. Na ausência do mar, o cineasta recorre às colinas, captando toda a magnitude e beleza da paisagem natural para compor um momento “A Noviça Rebelde Asiática” carregado de poesia, tão otimista quanto encantador.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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