Crítica

A política é o lobo da política. Era em tempo de o Brasil receber um filme com algo de argentino que não fosse Ricardo Darín ou os dramas burgueses (ótimos, por sinal) de Daniel Burman. Afora estes, sabemos da fascinação dos nossos vizinhos por pelo menos outro tema: política. O assunto nos chega agora com o longa de Santiago Mitre. Parceiro de Pablo Trapero e conhecido pelos roteiros de Abutres (2010) e Elefante Branco (2012), entre outros, Mitre estreia na direção com O Estudante.

O enredo tem em Roque Espinoza (Esteban Lamothe) o protagonista. É ele o jovem a desembarcar em Buenos Aires, logo no início, como quem se encaminha a um percurso que arrastará consigo o espectador. A narração em off nos dirá que Roque chega à capital vindo do interior para iniciar o terceiro curso na Universidade de Buenos Aires. Vista ao fundo, a faculdade de Ciências Sociais será mais do que cenografia, mas participará ativamente como proposta estética e ideológica.

As primeiras aulas estão para o personagem como as cenas inicias para o público. Elas serão responsáveis por introduzir o ambiente da faculdade de humanas, recriando o que há de mais recorrente: debates, plenárias e festas. Eventualmente, ouviremos falar de Montesquieu, Hobbes e Marx – coadjuvantes frente ao ímpeto juvenil. O campo teórico, porém, não seduzirá o protagonista mais do que a professora Paula (Romina Paula), cuja conversão de Roque ao movimento Brecha realizará tão instantaneamente quanto Jesus ao cego Bartimeu.

Assinado pelo diretor, o roteiro apresenta uma concepção interessante. Elaborado de maneira tradicional, a evolução temática trabalha o microcosmo universitário de modo a estender o olhar crítico à política como um todo. A postura séria da abordagem, claramente realista, encontra no cinismo o melhor recurso para a quebra – quando mais sentimos o filme pensar conosco.

Se em outras épocas berço de resistência, em tempos democráticos (sistema do qual a Argentina atual, ao que tudo indica, ainda participa), a política universitária assumiu posição secundária no mundo contemporâneo, seja pelos jogos mesquinhos de poder, seja por contemplar os próprios interesses, distantes da sociedade em que se insere. Neste sentido, Mitre trata o tema com um olhar severo. Os jovens retratados são idealistas ou adeptos de uma realidade condicionada; a discussão de ideias é sabotada pela demagogia; a academia deixa de ser espaço de formação e passa a ser reduto de barganhas pessoais.

Ao lembrar que um dos clássicos do pensamento político atende por Leviatã, o monstro escolhido por Thomas Hobbes para ilustrar a política em tempos sombrios, compreendemos o lado negativo – e facilmente sedutor – da política. O primeiro ato de O Estudante trata de instaurar a esperança, ainda que frágil, do novo momento iniciado na vida de Roque. A partir do envolvimento do protagonista com Paula, a transição para um sentimento que ruma para a destruição entra em curso. As festas e as garotas somem do horizonte de Roque. No lugar, um discurso cifrado, siglas políticas, costuras de interesse urgem na tela; os encontros amorosos dão lugar a encontros com líderes partidários. A mise-en-scène deixa de ser possibilidade e passa a ser tensão. O movimento mais claro estará na relação com Paula. Fundada no amor e no interesse, a relação se manterá apenas pela última ponta. Não à toa, portanto, que mesmo namorados, Mitre faz questão de suprimir – ou não dar espaço – para as cenas privadas. O mais próximo disso será o sintomático encontro dos dois em um banheiro de restaurante – quando discutirão.

Mitre filma com qualidade inesperada para o primeiro longa. A composição dos planos, o trabalho de luz, a evolução da narrativa, tudo aponta para um diretor seguro do cinema que pretende construir. Contudo, há uma convencionalidade – talvez fruto do medo de errar – que impede O Estudante de ser algo além de correto – um bom filme. Em especial na passagem do segundo para o terceiro ato, o drama se ressente de realizar toda a promessa guardada em si. A evolução do problema de Roque não deixa jamais o plano do esperado ou da normalidade. O final, com alguma criatividade mas sem brilho, sintetiza bem o visto em tela. Para quem está acostumado com um cinema argentino em que reviravoltas recarregam o ânimo dramático, faltou para o filme o que de melhor o cinema de seu país tem apresentado: vigor constante.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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