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Sinopse

Passado na década de 1950, um fotógrafo está hospedado numa pequena pensão, mas tem de acordar subitamente à noite para fotografar uma linda moça que acabara de falecer. O fotógrafo que está na região do Douro para documentar antigos métodos de trabalho nas vinhas, com especial atenção aos chamados cavadores da terra, fica subitamente perturbado pela imagem da falecida.

Crítica

O tempo é o alicerce principal do cineasta Manoel de Oliveira para a construção de O Estranho Caso de Angélica. Ironia, ou não, Manoel é quase tão longevo quanto o próprio cinema (tem 104 anos), então ninguém mais capaz de uma reflexão como esta, onde a finitude espreita a vida como se dela fosse parceria íntima, pronta para roubar-lhe a vez. Na trama, o jovem fotógrafo português/judeu Isaac (Ricardo Trêpa) é chamado no decorrer da madrugada para fotografar a filha de uma família importante, que jaz morta após acidente. Ao observar a falecida pela câmera, o insólito acontece: Angélica (Pilar López de Ayala) abre os olhos e lhe sorri. Através da lente surge mágica, o improvável se contradiz e a ideia de morte é posta em xeque. Bela maneira de aludir ao poder do cinema.

Como era de se esperar, Isaac fica transtornado e logo cai numa obsessão sem volta pela desconhecida, cujo sorriso pós-morte lhe trouxe algo que, em vida, provavelmente nenhum outro conseguiu. Seu registro da labuta diária dos trabalhadores braçais, contrapostos à modernidade e suas máquinas de desempregar gente, é outro indício de que O Estranho Caso de Angélica reflete sobre o decorrer inexorável do tempo e as consequentes transformações oriundas desse movimento lento, porém constante. Aliás, a própria atmosfera do filme nos desorienta entre passado e presente, pois se na pensão e na própria Quinta onde o protagonista fotografa Angélica – local que deixa ver na fachada os sinais do tempo (novamente ele) – se respira algo do passado, relances outros nos trazem irremediavelmente o presente, incluindo aí as preocupações contemporâneas reveladas durante conversa entre intelectuais.

A vida de Isaac passa a gravitar em torno de Angélica, aquela de nome alusivo aos anjos. É como se depois de extasiar-se frente ao desconhecido e, por que não, ao amor, o fotógrafo passasse o restante do filme se preparando para seguir caminho então definido, aliás, o único possível para aproximá-lo verdadeiramente da amada. Sendo assim, o controle sobre sua cronologia, de alguma maneira poder de vida e morte, no fim das contas faz dele senhor da própria vontade, mesmo que pareça refém de uma paixão infundada no mais das vezes. O longa tateia bravamente o metafísico quando os sonhos absurdos ganham corpo (ou espírito) real dentro da diegese.

O Estranho Caso de Angélica é filme difícil de classificar, não atende convenções. Por exemplo, a imobilidade dos coadjuvantes no desenrolar de determinadas cenas, prato cheio para deflagrar uma “teatralidade” incômoda, soba regência de Manoel torna-se artifício de grande expressividade, soa como parte indissociável do contexto, não elemento deslocado. Essa “naturalidade” também se aplica ao fantástico, integrado organicamente à trama. Em dias de entretenimento ligeiro e completamente esquecível, cortados, vez ou outra, por exceções animadoras, O Estranho Caso de Angélica é, além disso, fruto de outro tempo, de alguém que faz hoje o grande cinema de outrora. A jovialidade artística de Manoel de Oliveira, atributo sem igual, é um paradoxo e tanto.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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