Crítica


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Sinopse

O prestigioso professor de psicologia David Hart convida alguns de seus alunos para fazerem experiências sobrenaturais dentro de uma mansão abandonada. Ele escolhe o local onde um incêndio provocou a morte de dezenas de pessoas durante uma festa séculos atrás. Diz a lenda que o espírito do proprietário, um fabricante de chapéus, continua circulando pela residência.

Crítica

A premissa possui potencial: o que aconteceria se o clássico Alice no País das Maravilhas fosse contado pela perspectiva de um filme de horror, com o Chapeleiro Louco interpretando o adversário principal? Seria possível transpor a divertida excentricidade do personagem a outro tom, conduzindo Alice numa aventura repleta de perigos mortais? Em seu primeiro longa-metragem como diretora, Catherine Delvaney abraça o desafio. Ela aparenta ser a pessoa ideal para subverter o imaginário colorido e lúdico de Lewis Carroll rumo a um universo sombrio e perigoso, afinal, trata-se de uma experiente diretora de arte, tendo trabalhado em grandes produções de Hollywood de caráter fantástico, além de dezenas de filmes de terror. Enquanto espalha pela trama alguns relógios, coelhos, xícaras de chá e gravatas borboleta, investe no motor habitual do gênero: um grupo de jovens presos numa mansão mal-assombrada e perseguidos por criaturas mortais - no caso, o fantasma do chapeleiro, incendiado durante uma festa-orgia séculos atrás. A sugestão de uma sexualidade pronunciada para a figura cartunesca seria interessante caso o adversário recebesse algum tipo de construção psicológica. A cena da filhinha do proprietário invadindo a orgia porque não consegue dormir sugeriria traumas, abusos e outros dilemas morais. Estaríamos diante de um pesadelo psicanalítico, honrando a profundidade do texto original? Antes fosse o caso.

O Chapeleiro Louco (2021) impressiona pelas fragilidades do roteiro, aparentemente escrito por artistas sem a mínima noção de desenvolvimento de personagens, de conflitos, de diálogos, de tempo e de espaço. O roteiro propõe um professor de psicologia (Armando Gutierrez, autor do argumento) convidando os alunos para fazerem experiências sobrenaturais no casarão. O ponto de partida necessitaria de contextualização para soar verossímil: como um psicólogo e pesquisador se interessa por fenômenos paranormais? De que maneira escolheu aqueles quatro alunos em particular, e como todos aceitaram tão rápido permanecer longos dias no local isolado? O que ocorre com as outras disciplinas a cursar, com o pai prestes a morrer em casa? Por que o professor David Hart anuncia que ficará apenas durante o fim de semana, se o grupo permanece durante vários dias no local? Que tipo de acordo ele teria com os funcionários da casa? Ainda mais frustrante é perceber que o experimento responsável por levá-los à locação jamais acontece de fato. Os jovens fazem pequenas sessões convencionais de terapia e passam o resto do tempo perambulando sem objetivo pela propriedade. Eles ganham cadernos para anotarem suas sensações, mas este elemento é esquecido pela montagem. O filme tem pressa para separá-los do mundo lá fora, desprezando a motivação para continuarem no local uma vez que situações estranhas começam a acontecer. É dificílimo acreditar que exista qualquer motivação acadêmica por trás desta escapada.

Além disso, Delvaney demonstra dificuldade em determinar os rumos da narrativa entre realidade e imaginação. A fronteira dos dois registros pode resultar em ótimo motor de conflito, entretanto, o longa-metragem segue apostando em ações que se desfazem, refazem e desfazem de novo, até perderem o efeito e o propósito. Um exemplo: os quatro amigos bebem e brincam num salão vazio. Atrás deles, começa a chegar o fantasma chamuscado do chapeleiro louco, prestes a capturá-los. Quando se viram, o inimigo desapareceu. Depois, volta a aparecer. Na cena seguinte, namorado e namorada fazem sexo no quarto, mas um vulto sugere a presença de outra pessoa no quarto com o rapaz bêbado. A moça afirma que nunca entrou no lugar, porém as imagens seguintes a contradizem. Mais um caso: a aluna observa seus dentes caindo em frente ao espelho. Em seguida, percebe-se se tratar de mera ilusão. No jantar, os dentes caem de fato. O que está ocorrendo? Tanto a queda efetiva dos dentes quanto o despertar de um pesadelo sobre dentes caindo podem surtir efeito considerável. Em contrapartida, a transição em curto-circuito, afirmando uma leitura e seu contrário, impede o aspecto de consequência, fundamental ao terror. Este gênero trabalha com o medo da morte e sua inevitabilidade - todos morreremos um dia, assim como as pessoas importantes em nossas vidas. O terror brinca de reanimar os mortos, sugerir sua presença eterna e resgatar fantasmas do passado, confrontando o espectador à finitude. O pesadelo, no caso, viria da possibilidade de os traumas sempre poderem retornar. Ora, na produção de 2021, nenhuma ação surte efeito durante tempo suficiente antes de ser desfeita, mudada, refeita. O perigo se aproxima, ameaça os heróis, mas então some de vista. Era tudo uma brincadeira?

O resultado também sofre com um sem-número de símbolos mal utilizados, ou explicitados em excesso. Os dentes nos chapéus, os pedaços de carne crua, o livro encontrado numa gaveta empoeirada, a seita secreta, a estranha sopa rala e outros elementos são despejados sem consequência para os personagens, nem para os rumos da história. Já os flashbacks com traumas dos hóspedes - principalmente o afogamento num lago - se repetem com tamanha frequência que lembram um erro de montagem, visto que as reincidências não acrescentam novas informações ao conflito. A direção de arte, quem diria, beira o amadorismo, o que talvez explique a direção de fotografia escura demais, escondendo detalhes dos cenários e figurinos. O Chapeleiro Louco desperta a impressão de uma obra elaborada por uma dezena de vozes conflitantes, sem a presença de um produtor capaz de unificar o discurso, além de observar as imagens e apontar os problemas evidentes. Surpreende que uma quantia razoável de dinheiro tenha sido investida num projeto de acabamento precário. Alguns filmes nunca conseguem esconder o fato de terem enfrentado crises criativas e de viabilização. No final, os criadores simplesmente colam os cacos da melhor maneira possível e o despejam o resultado discretamente no circuito comercial, torcendo para passar despercebido. Nem todas as iniciativas podem dar certo, não é? Os risíveis efeitos visuais de cinzas, fuligem, fogo e explosões que o digam. Seria compreensível se este filme representasse um tropeço na carreira, do tipo que os atores e criadores estariam dispostos a esquecer.

Quanto ao elenco, os nomes pouco conhecidos se tornam reféns da indecisão da diretora e das incoerências do roteiro. Armando Gutierrez compõe um professor canastrão, meio sedutor, meio monstruoso, algo que apenas antecipa a reviravolta final. Que motivo plausível ele teria para desaparecer durante tantas horas do dia? Os quatro estudantes correspondem aos estereótipos do horror norte-americano adolescente: o atleta musculoso e imaturo com sua namorada (por serem um rapaz negro e uma menina loira sexualmente ativa, ambos se convertem nos primeiros alvos), a menina virgem de roupas de babado cor-de-rosa, e o garoto tão tímido que sequer consegue concluir alguma frase sem gaguejar e olhar para os lados. Samuel Caleb Walker, no papel do protagonista, efetua uma composição apática nas cenas realistas, e maneirista nas cenas sobrenaturais, refletindo o descompasso conceitual do projeto. Ele falha na tentativa de imprimir peso às falas para além de uma hesitação constante. A estrutura sequer cumpre com as passagens básicas do terror em casas assombradas (personagens enfrentam força maligna, os coadjuvantes morrem e, com grande esforço, o herói supera o adversário até sair da casa). O projeto se encerra sem elaborar os traumas de infância dos quatro jovens, nem estabelecer uma ponte concreta entre presente e passado, entre natural e sobrenatural, entre psicologia e misticismo. A mitologia deste chapeleiro que jamais vemos confeccionando chapéus permanece um mistério. À medida que as cenas desconexas e absurdas se sucedem, a referência a Alice no País das Maravilhas fica cada vez mais distante. 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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