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Sinopse

Sebastian é um homem comum. Já na casa dos 30 anos, ele dedica seu tempo ao seu cão fiel e trabalha em uma série de empregos temporários. Enquanto caminha de forma intermitente pela idade adulta, navega pelo amor, pela perda e pela paternidade. Até que o mundo é abalado por uma catástrofe inesperada, virando de cabeça para baixo sua já turbulenta vida. Sebastian luta para se adequar a um mundo em constante mudança - e que pode finalmente estar chegando ao fim.

Crítica

Sebastian (Daniel Katz) corresponde àquilo que o cinema norte-americano chamaria de “loser”: um homem de mais de 30 anos de idade, sem emprego fixo, nem relacionamento amoroso, laços próximos com os familiares, e principalmente, sem objetivos para o futuro. Ele se comporta como um adolescente despreocupado, do tipo que veste roupas desgastadas e insiste em levar a cadela para a empresa onde consegue um pequeno emprego - preferindo perder o cargo a deixar o animal em casa. O designer gráfico sustenta a expressão constante de apatia misturada com descaso, o que não impede o filme de nutrir carinho por este sujeito e elevá-lo à condição de herói. Trata-se de um “homem sem qualidades” - até o final da trama, terá provado valor nulo para qualquer tarefa -, apresentado pela diretora Ana Katz enquanto protótipo do indivíduo comum. Os critérios para esta generalização são baixos, porém é seguro afirmar que o filme prioriza a banalidade cotidiana aos acontecimentos espetaculares. E ninguém transmite a impressão de trivialidade imutável melhor do que Sebastian, rapaz que, na maioria das ficções, constituiria o coadjuvante, responsável por dar a réplica ao protagonista. Aqui, ele ganha sua aventura: O Cão que Não se Cala (2021) oferece a vitória do homem mediano.

A cena inicial, em referência direta ao título, aponta para uma tragicomédia da classe média. Vizinhos começam a aparecer à porta do protagonista, um por um, sob a chuva, para reclamar de Rita, a cadela que nunca para de chorar. Eles especulam os motivos da tristeza do bicho, enquanto o rapaz os observa sem surpresas. A seguir, para a nossa surpresa, a narrativa adota rumos diversos, destinados a romper com inserção social do sujeito: ele fracassa na empresa, torna-se o exemplo de um talento desperdiçado na perspectiva das amigas da mãe, e se revela incapaz de proteger a cadela melancólica - que, aliás, nunca escutamos chorar antes de um clímax relacionado ao bicho. A cineasta anuncia um mecanismo de representação em curto-circuito: informações sugeridas pela imagem não se confirmam pelo som, o que atinge também o conserto da água (resumido a um sistema de roscas, resolvido em questão de segundos) e o jantar jamais finalizado, apesar de a câmera se concentrar em longos planos de detalhe extremamente próximos da berinjela fatiada. Katz ameaça enveredar por diversas pistas, mas demonstra prazer maior em sabotá-las.

O impacto desta escolha se encontra na impressão de aleatoriedade. Passadas algumas sequências isoladas, com aparência de esquetes, incluindo segmentos em animação (para contornar as partes mais difíceis de filmar em live-action) e deixando os coadjuvantes em segundo plano (apesar da presença de nomes do porte de Julieta Zylberberg e Mirella Pascual no elenco), constata-se que a história caminha a esmo. É difícil imaginar que o roteiro, de autoria da cineasta junto a Gonzalo Delgado, tenha sido longamente desenvolvido, em vários tratamentos, e defendido junto a produtores e bancas de editais. As sequências centrais eriam cortadas na maior parte dos longas-metragens de ficção, mesmo aqueles voltados ao cotidiano de pessoas comuns. É improvável que o espectador se identifique com Sebastian, figura que sequer porta a comicidade por si próprio: elementos bizarros acontecem ao seu redor, mas ele não produz os conflitos. Quando uma mulher entra em crise de choro pelo marido doente, o protagonista segue em postura de descaso. Caso acentuasse a apatia ao limite do absurdo, despertaria humor. Do jeito como é construído por Daniel Katz, reafirma a indiferença em relação ao mundo.

Um dos motores de estranheza aponta a uma possível ousadia estética: a utilização de elipses invisíveis, ou seja, longas passagens do tempo num corte banal da montagem, evitando avisar o espectador por meio de fades ou letreiros explicativos. Sebastian conhece uma mulher, corta, estão juntos há tempos, corta, têm um filho pequeno, corta, divorciaram-se, e assim por diante. Esta ferramenta portaria interesse no caso de apresentar transformações bruscas, que solicitassem uma postura ativa do espectador para compreender o novo momento da vida do herói, e preencher mentalmente as lacunas do tempo passado. No entanto, passam-se os anos e o moço troca de corte de cabelo, porém sustenta uma convicção semelhante a respeito do mundo, da esposa, da criança. A estética se converte num terreno infértil, a exemplo do preto e branco de textura digital excessivamente nítida e mal trabalhada em termos de volume. Paira a incômoda sensação de que a fotografia e a direção de arte não tenham sido concebidas para o preto e branco, convertido em pós-produção. Prioriza-se uma postura jovem, blasé, inconsequente e ensimesmada - um cinema brincando de fazer cinema.

Rumo à conclusão, O Cão que Não se Cala aponta para uma leitura particular da crise sanitária de Covid-19, através de uma epidemia transmitida pelo ar, forçando os cidadãos a utilizarem bolhas de acrílico na cabeça, ou andarem agachados, pois o espaço a 1,2 metro do chão continua seguro. O episódio possui sua graça, embora mantenha conexão frágil com o que o antecede até então. A menção pandêmica se transforma em mero apêndice, um pensamento talvez adicionado posteriormente à conclusão, dentro da narrativa de modestos 73 minutos. No final, resta dúvida sobre o que a cineasta teria a dizer e a mostrar a respeito de seu país, da contemporaneidade, da pandemia, do homem comum e da beleza cotidiana. A história jamais se leva a sério, nem no plano formal, nem discursivo - como se importar por figuras que nem os criadores consideram com atenção? Os vizinhos, a chefe, a esposa, a criança e a cadela Rita passeiam pela trama sem deixar traços, nem despertar saudade ou preocupação quando são ocultados pela montagem. Eles ocupam uma ficção que se assemelha ao primeiro tratamento de uma ideia pitoresca, ao invés de um projeto pronto para chegar às salas de cinema.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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