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Sinopse

Serge é um dos únicos médicos plantonistas em Paris na véspera do Natal. Ele está exausto e com dores nas pernas depois de uma injeção aplicada incorretamente. Quando seu caminho cruza com o de um entregador de comida por aplicativo, Serge tem a ideia de pedir ao jovem sem experiência para substitui-lo até o fim do plantão. Através de um fone de ouvido, o médico real dá as instruções necessárias ao falso doutor. O que poderia dar errado?

Crítica

Nas duas últimas décadas, o cinema francês popular obteve seus principais sucessos de bilheteria através da fórmula dos opostos que se atraem. Intocáveis (2011) e A Riviera Não É Aqui (2008), que superaram a marca de 20 milhões de espectadores cada, se baseiam nestes princípios: no primeiro caso, um jovem negro e malandro da periferia é encarregado de cuidar de um milionário tetraplégico; e no segundo caso, um homem do sul do país, próximo à praia e ao calor, precisa se mudar para uma cidadezinha fria do norte, onde os sotaques e gírias são incompreensíveis. O preceito clássico da crônica de costumes já foi adaptado por todos os países, incluindo o Brasil com Se Eu Fosse Você (2006) e Se Eu Fosse Você 2 (2009), no entanto, as simetrias entre extremos exagerados têm dominado o humor cinematográfico francês, com trocas de corpos entre homens e mulheres (Se Eu Fosse um Homem, 2017), um mundo onde as mulheres dão as ordens e os namorados são objetificados (Eu Não Sou um Homem Fácil, 2018) e uma família onde os mais velhos são rebeldes, em oposição aos jovens responsáveis (Tal Mãe, Tal Filha, 2017). Uma lógica semelhante parece se aplicar a O Bom Doutor (2019), de Tristan Séguéla. Felizmente, o diretor consegue subverter, ou pelo menos atenuar, a fórmula.

No roteiro, um médico experiente e ranzinza é designado plantonista para atendimentos em domicílio na véspera de Natal. Como todos os colegas têm cônjuges e filhos, ele fica sozinho na função, penalizado por sua situação familiar. O único trabalhador que cruza seu caminho durante a noite é um entregador de comida por aplicativo - um rapaz cheio de energia e sem qualificação para empregos de melhor remuneração. Sofrendo com dores no corpo, Serge Mamou-Mani (Michel Blanc) pede a Malek (Hakim Jemili) que o substitua em alguns atendimentos simples para tratar de dores de cabeça, febre e intoxicação alimentar. Está armado o cenário para a amizade improvável entre indivíduos percebidos como contrários, que se tornariam melhores pelo contato com a diferença: um pai sem filho e um filho sem pai; um “doutor" respeitado e um garoto precarizado que se considera “empreendedor”; um posto estimado socialmente contra uma ocupação depreciada. Caso a iniciativa seguisse as regras dos filmes listados acima, Serge seria arrogante e elitista, diante da jovialidade contagiante do colega deslumbrado com o mundo alheio. Entretanto, ambos fogem aos estereótipos esperados de suas classes sociais. Trata-se de dois homens de origem magrebina - tanto o profissional da saúde quanto o entregador. Eles são descritos pelo desempenho médio em suas funções: ao invés de um doutor renomado e um rapaz atrapalhado, representam figuras apenas razoáveis em seus cargos. O equilíbrio começa neste aspecto.

Em seguida, a narrativa toma o tempo de aproximar os protagonistas ao longo de tentativas falhas de situá-los num objetivo comum. Caso a proposta do falso médico aparecesse abruptamente, se tornaria uma convenção narrativa e faria dos personagens dois irresponsáveis. Por isso, o autor e roteirista cria uma série de dispositivos permitindo a Serge e Malek se conhecerem, se rejeitarem, se falarem novamente, até formarem pequenos laços de conveniência, passíveis de ruptura a qualquer instante. A calma no estabelecimento do conflito contradiz a expectativa do humor fácil, dependente do embate entre extremos. Somem os maniqueísmos típicos dos retratos cômicos de classes: o sujeito cínico faz chacota de quem imagina que ele passa o dia “salvando vidas”, enquanto o novo amigo se mostra capaz de aprender termos complexos de biologia, além de escapar à figura do malandro da periferia. Em comum, sustentam uma melancolia que permite a identificação com o outro: eles prefeririam estar de folga na véspera de Natal, porém o primeiro não tem família, e o segundo tem família até demais. A discreta crítica social equipara suas atividades pela precarização, apesar de sublinhar a importância de ambas - o filme se abre com o letreiro “Os autores esclarecem que confiam plenamente na profissão médica”, respondendo aos possíveis detratores. O principal gesto político, neste caso, se encontra na predisposição a enxergar a equivalência entre Serge e Malek, ao invés de suas divergências.

O Bom Doutor pode ser lido dentro do subgênero dos filmes natalinos, dispostos a abraçar pessoas em dificuldade, perdoar conflitos e, sobretudo, acreditar nos milagres. A história situada durante uma única noite oferece à dupla as ruas esvaziadas de Paris, transformadas num plano de fundo para embates de aspecto teatral. Os dois continuam a se encontrar porque a reunião era inevitável - não havia mais ninguém para conhecer neste espaço. Paira um aspecto mágico próximo do realismo fantástico: a mulher dá à luz sem ter um ventre saliente, Serge ganha a oportunidade simbólica de salvar a garota que representa seu filho morto. Séguéla desenvolve esta sugestão de maneira clara, porém discreta: trata-se de uma jornada desprovida de ícones religiosos, afastada das clássicas (e norte-americanos) cores verde e vermelho. O drama preserva a tonalidade bege e marrom durante a integralidade do percurso, despersonalizando o imaginário dos feriados nacionais. Em paralelo, o cineasta evita reforçar o heroísmo e valorizar as boas intenções por meio de enquadramentos e montagem: as cenas se sucedem com a frieza de um drama clássico, cabendo aos atores e aos diálogos oferecerem a carga de absurdo esperada da troca de identidades.

De fato, a dupla central se mostra bem dirigida e calibrada para o tom agridoce desejado pelos criadores. Hakim Jemili, humorista e celebridade do YouTube, está distante dos tiques associados aos novos influenciadores digitais. O estilo despojado sustenta certa nostalgia na fala, conveniente para o jogo cênico com um ator tão experiente quanto Michel Blanc. O cineasta tem a boa ideia de deixar ao comediante com cinco décadas de carreira o papel mais sério, enquanto o ator inexperiente se encarrega do humor de desconforto. Já as cenas de humor físico e escatológico - o sujeito incapaz de evacuar, a cena do parto - são ora cortadas por saltos na montagem, ora acompanhadas de longe, evitando o caráter grotesco ou espetacular. A malícia da premissa se equilibra com a ingenuidade destas pessoas, incapazes de perceber a conduta amadora do pretenso médico. Em outras palavras, o otimismo desta fábula de Natal se encontra com aspectos mais graves relacionados à solidão, ao desgaste mental e à ruína de uma política do bem-estar social. Menções ao luto de Serge se sucedem aos flertes engraçados de Malek na cena seguinte - o filme se esforça para não abusar nem da tristeza, nem da condescendência dos pacientes. O longa-metragem se encerra com a concretização de uma comédia de qualidade a partir da desgastada dinâmica da atração entre opostos, por perceber que eles jamais foram tão diferentes assim, e que estão condicionados à mesma realidade sociopolítica.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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