Crítica


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Sinopse

Um garoto de 14 anos começa a estudar numa renomada escola de gastronomia e hotelaria. Lições sobre culinária, etiqueta, bom atendimento e até acerca do papel da religião se confrontam com o universo infantil.

Crítica

A faca fica à direita, e o garfo, à esquerda. A colher se posiciona acima do prato, perpendicular à faca e ao garfo. A garrafa pode ser segurada na base inferior, mas preferencialmente, um pouco acima. Quando se segura a bandeja com a mão direita, a esquerda deve ficar atrás das costas. Este mundo de códigos e regras constitui a quase integralidade de O Aprendizado (2019), documentário italiano que acompanha a formação de garotos pré-adolescentes num curso de hotelaria, onde aprendem a ser garçons, a servir os clientes no quarto e na recepção, a executar pratos simples na cozinha e mesmo recebem lições básicas de direito do consumidor. Não há qualquer narração, letreiro, trilha sonora, entrevista ou mesmo alguma interação mais próxima entre os inscritos no curso. O diretor Davide Maldi oferece uma imersão rigorosa dentro de um mundo igualmente rigoroso. Os garotos não podem falar, brincar, demonstrar sua personalidade. Este internato possui o funcionamento análogo ao de um mosteiro, ou mesmo de um treinamento militar, no sentido de ser composto de ordens e obediência, sem possibilidade de questionamento. “Você deve amar o seu trabalho e vestir o seu trabalho”, decreta um professor que jamais sorri.

É muito curioso que o cineasta eleja como protagonista o pior aluno da turma. Luca Tufano possui grande dificuldade de concentração: ele dispersa o olhar segundos após uma bronca severa, e enquanto os colegas dobram guardanapos, cuja precisão é literalmente medida por uma fita métrica, o garoto admira a paisagem montanhosa fora da janela, ou então vira a cabeça para baixo. Luca não demonstra qualquer desconforto em relação à presença da câmera, muito pelo contrário: esta é apenas mais uma imposição diante da qual ele não consegue prender os olhos. Há certo humor na decisão de se focar obsessivamente num garoto que não se foca em nada. Diante de um mundo de regras, o diretor prefere a exceção, o elemento destoante. Quando leva mais um sermão diante do comitê disciplinar, o garoto reage com evidente cara de indiferença, virando o rosto para todos os lados, antes de responder: “Estou entediado”. A fala mais sincera do filme provém desta afronta, espécie de clímax diante de professores que tratam o sucesso no curso como uma questão de vida ou morte. “Este é o seu futuro!”, afirma um deles. Ora, Luca preferiria estar na montanha, onde ordenha vacas e cuida de ovelhas.

Compreende-se que o sonho do garoto esteja distante, mesmo quando não pronuncia uma palavra sequer. Compreende-se, igualmente, que a formação profissional em idade tão precoce represente uma oportunidade de ganhar dinheiro logo. Há algo muito triste nas imagens de meninos que não brincam, mas sabem exatamente o porcionamento de uma coxa de frango no prato principal (o que é muito diferente do porcionamento da sobrecoxa, claro). A montagem efetua comparações tão cômicas quanto assustadoras entre os estudantes e os animais empalhados na entrada do hotel. Eles possuem a mesma cara de assustados, a mesma pose dura, o mesmo bico fechado. E sim, os adolescentes parecem tão mortos por dentro quanto as aves. O humor amargo de O Aprendizado parte de uma linguagem essencialmente visual, através de recursos de montagem, enquadramento e cor. As roupas amarelas dos garotos, diante das paredes rosas e das portas verdes, criam um ambiente próximo da fábula infantil, onde se costuma encontrar uma ternura incompatível com a disciplina rígida do lugar. Durante as conversas, a câmera se mantém fixa no rosto dos meninos escutando as broncas, sem o contraplano do professor. Assim, reforça-se ao limite do absurdo esta aparência estanque, imutável e conservadora, no sentido de preservar regras consideradas como as únicas válidas.

Ao mesmo tempo, a opção estética de Maldi produz uma frieza implacável no olhar ao menino. Jamais acompanhamos o mundo pelo ponto de vista dele, e sim de um posicionamento externo, silencioso, distante. Alguns enquadramentos simétricos demais soam como uma intervenção fictícia neste universo, entretanto, na maior parte das cenas, impera a impressão de um hóspede que espia as aulas, em registro próximo do voyeurista. Caso acompanhasse a vida do garoto fora do internato, e nos fornecesse algum indício da vida familiar ou dos sonhos para o futuro, teríamos um retrato mais empático. Ora, o diretor prefere fazer do sistema opressor o seu objeto de estudo, ao invés de Luca. O garoto se torna mero exemplo do adestramento de jovens garotos para uma atividade que nunca se justifica dentro da mentalidade infantil. Por que eu deveria aprender palavras de francês para lidar com estrangeiros?, parecem questionar os rostos impassíveis. Caso representasse uma subjetividade, teríamos acesso a um olhar humano dentro de uma engrenagem precisa, mas Maldi opta pela representação oposta, filmando a máquina dentro da qual, por acaso, inserem-se subjetividades forçadas dentro de moldes preconcebidos.

Ao final, O Aprendizado oferece uma quantidade expressiva de sarcasmos visuais, além de uma polida crítica à educação pelo cabresto. No entanto, não deixa de ser irônico que o diretor critique a desumanização do mundo do trabalho sem humanizar nenhum de seus personagens – nem mesmo Luca, a quem se possibilita no máximo balbuciar alguns monossílabos. Falta construir um contraste a este universo hermético: o que mais existe como opção profissional para os meninos da região além da hotelaria? Como se sustentam os agricultores e criadores de gado? Como é a dinâmica entre os meninos nos dormitórios, ou com outros profissionais mal remunerados do local (faxineiros, vigias)? Paira um teor questionável no olhar mecânico à mecanização, como se a abordagem fosse literal demais em sua representação estética. Mesmo assim, Maldi transparece um cuidado precioso na duração dos planos, no uso das cores e nos enquadramentos (a exemplo do professor furioso, visto pela janelinha arredondada das portas das cozinhas). Pode-se discutir se o deleite visual é construído apesar dos personagens, sobrepondo-se a eles e instrumentalizando-os para os preceitos estéticos do diretor, ou se foram construídos sob medida para explicitar o absurdo e o ridículo de tantos códigos e imposições ao mundo infantil.

Filme visto online na 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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