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Sinopse

Expatriado norte-americano, Tom decide participar de uma tentativa de assassinato para levantar algum dinheiro. Tudo o que precisa fazer é encontrar o executor do serviço. E ele acaba topando com Jonathan, paciente terminal desesperado para deixar algum conforto financeiro para sua família.

Crítica

Este poderia ser um espetáculo, no sentido mais hollywoodiano do termo. A indústria norte-americana havia criado a noção de blockbuster pouco anos antes, e uma trama de suspense baseada em Patricia Highsmith serviria de material perfeito para uma ação frenética. Sabe-se bem de que maneiras o cinema popular viria a se apropriar do personagem de Tom Ripley alguns anos mais tarde. No entanto, Wim Wenders, muito mais influenciado pelas vanguardas europeias dos anos 1960 e pela tradição do Novo Cinema Alemão, enxerga neste material a oportunidade de falar sobre marginais perdidos pela cidade grande – o mote preferido de suas obras das décadas de 1970 e 1980. Tom Ripley (Dennis Hopper) não se torna um mestre manipulador, apenas um norte-americano perdido na Alemanha, vivendo de pequenos golpes e temendo ser descoberto por isso. Ele não possui família nem amigos. Jamais veremos sua casa, ou qualquer sinal de enraizamento naquele lugar. Seu inesperado parceiro da trama será Jonathan (Bruno Ganz), restaurador decadente de obras de arte, e pai de família convivendo com a esposa e o filho dentro de um apartamento minúsculo.

Por meio desta apresentação geográfica e socioeconômica, somos convidados a compreender os motivos pelos quais ambos embarcam no crime, e por que passam da venda de pinturas falsos ao assassinato encomendado por um homem francês. Jonathan jamais questiona o motivo pelo qual precisaria matar o empresário judeu. Ele hesita, baixa o rosto e, alguns dias após o convite, aceita a tarefa como um trabalho qualquer. O pequeno artesão, que também faz molduras de quadros, sofre com uma doença não especificada, cuja gravidade varia de acordo com a interpretação de cada personagem. Seria fácil para o diretor decretar que seu protagonista tem poucos dias de vida, que leva uma vida de miséria, mas nenhum destes fatores se sustenta em O Amigo Americano (1977). A doença existe, porém não inspira urgência. A vida de pouco conforto tampouco motiva medidas desesperadas. Os personagens matam sem real empenho, fogem sem terem planos para onde ir. De certo modo, a possibilidade de assassinar um desconhecido traz sentido à vida entediante de Jonathan, envolvido com o “amigo americano” de caráter duvidoso. O autor privilegia o desenvolvimento de uma obra melancólica, repleta de belas cores verde neon, direcionais e fortes demais, reforçadas pela granulação da película.

O filme não tarda a revelar suas verdadeiras ambições, de ordem estética ao invés de discursiva. Durante um leilão de obras de arte, ainda no primeiro quarto da narrativa, a câmera e a montagem efetuam um impressionante balé a partir de pessoas sentadas em cadeiras comuns, lado a lado. Os sucessivos lances criam um ritmo feroz entre apostadores, seguidos com atenção pela direção de fotografia, que consegue apresentar personagens em plena ação: através do jogo de olhares, sabemos exatamente quais figuras estão de conluio com quais outras, quem está ciente da falsificação da obra e quem teme ser descoberto. A tensão cresce exponencialmente em questão de minutos, sem quaisquer falas para além do anúncio dos lances, e evitando o uso de trilha sonora. Ao invés de embutir ruídos ou fragmentar as cenas, Wenders opta pelo caminho oposto nas cenas de ação: durante os ápices do thriller, nunca há qualquer música, e o solitário Jonathan, sem ter com quem conversar, não pronuncia uma palavra sequer. A comunicação entre capangas ocorre pelas trocas de olhar, e decisões importantes – devo disparar agora, devo esperar as pessoas no metrô saírem, ou me misturar na multidão? – dependem apenas da expressividade dos atores. Felizmente, o projeto conta com dois dos maiores atores da história do cinema, no ápice de sua arte. Bruno Ganz foge a qualquer afetação, enquanto atribui inesperados símbolos ao personagem (os olhos fechados durante a perseguição, o riso involuntário num momento triste). Já Dennis Hopper sustenta o mistério deste caubói expatriado, sustentando a ambiguidade de suas reais intenções em relação ao restaurador.

Entre tantas cenas deslumbrantes, uma delas constitui um banquete para os olhos, uma verdadeira aula sobre mise en scène, decupagem e uso expressivo da iluminação. A primeira morte encomendada, dentro do metrô de Paris, se desenrola durante longos quinze minutos, simulando o tempo real, com planos extensos e impecavelmente coreografados. Novamente, não há uma fala sequer, apenas as decisões abruptas de Jonathan, que precisa mudar sua estratégia diante de imprevistos. A câmera ora acompanha fielmente o assassino amador, ora se atarda sobre a plataforma, sugerindo que o personagem poderia partir sozinho, distanciando-se da imagem – o que aumenta a tensão. O tiro ocorre em planos abertos e distantes, numa escolha ousada, antes de a fuga ser acompanhada por uma vertiginosa câmera giratória em plongée. Apenas pelo uso de enquadramentos, pela profundidade de campo, pela duração dos planos, pela atuação e pela fotografia, o cineasta sugere uma infinidade de possibilidades: Jonathan pode abandonar o plano e sair da estação, ele pode perder seu alvo de vista, pode sofrer com consequências da enfermidade, pode atirar no homem errado, pode ser capturado pelas câmeras de segurança.

Em paralelo, o filme explora muitíssimo bem a paisagem urbana tanto de Hamburgo quanto de Paris, saltando entre close-ups nos rostos dos personagens aos planos gerais, evitando o costumeiro, e banal, plano de conjunto intermediário entre ambos. Wenders valoriza as avenidas, os prédios corroídos, o barulho dos comércios, a circulação pelo metrô e pelo trem. O ritmo é finamente orquestrado ao longo de duas horas de duração, jamais apresentando alguma cena arrastada, nem apressada. A direção confia na capacidade do espectador em compreender elementos sem explicá-los em excesso, enquanto aposta em nossa capacidade de imersão, apesar de os personagens não terem todos os seus conflitos elucidados. Na ausência de justificativas, ficamos com a ambientação embriagante, encarregada de sugerir por si só todos os saltos de humor destes personagens. A conclusão inclusive permite leituras tragicômicas sobre estes sujeitos de pouco talento, sobrevivendo graças ao acaso e ao improviso. Teria sido mais chamativo, e também menos natural, transformar Tom e Jonathan em dois mestres de suas atividades. Ora, Wenders imprime um teor realista, com aparência de aleatoriedade, dentro de uma condução narrativa que, conforme descobrimos mais tarde, havia sido finamente orquestrada por Highsmith e pelo próprio cineasta.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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