Crítica


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Sinopse

Um mosaico caleidoscópico de cenas do dia-a-dia observa a performance ritualizada da feminilidade e masculinidade nas interações comuns, do nascimento à vida adulta, interpretando gênero como uma prática corpórea e performática, uma cerimônia social; juntando as estéticas realista e experimental, um retrato perturbador das ideias de normalidade convencionais.

Crítica

Para o termo “normal”, o dicionário Aulete fornece duas definições praticamente opostas: 1. Que é natural (algo que pode ser compreendido como vindo da natureza, ou seja, que não necessariamente passa pelo controle humano), 2. Que é segundo a norma ou padrão (uma convenção, necessariamente criada dentro de um contexto social). Popularmente, a primeira acepção se torna mais comum: costuma-se pensar que o normal constitui uma regra da natureza à qual cabe aceitar, embora nem sempre se pense que a percepção da normalidade é construída culturalmente, mudando de acordo com o círculo social. O que é considerado normal para um grupo não será para outro. O dicionário fornece outro significado interessante ao termo: 3. Mental e fisicamente saudável, o que transparece a conotação positiva de se estar dentro das normas.

O documentário dirigido por Adele Tulli está preocupado sobretudo com a segunda definição: a construção social do que se percebe como normalidade, tornando-se imposto aos demais. A cineasta examina em particular as regras do feminino e o masculino dentro da sociedade, da infância à idade adulta. Assim, filma garotinhas tendo a orelha furada para colocar o primeiro brinco (“Você vai ficar linda igual à mamãe!”, afirma a provável voz de um familiar, em off) e uma indústria fabricando ferros de passar em plástico, cor de rosa, para as meninas brincarem de dona de casa desde cedo. Mais tarde, surgem os rituais de debutante e do casamento, onde mulheres são aconselhadas a “darem atenção ao marido”, caso contrário, serão culpadas por uma eventual traição. Ao homem, ensina-se o motociclismo, a guerra, a conquista do espaço público, o flerte com meninas.

O aspecto mais interessante do projeto se encontra no retrato silencioso das normas: ao longo de esquetes sem qualquer forma de depoimento ou narração, sucedem-se situações destinadas a escancarar os códigos artificiais de gênero. Seria fácil articular diálogos a respeito do exagero dessas representações, porém a diretora prefere que as imagens falem por si próprias, e que os arranjos da montagem sublinhem o contraste evidente entre o tratamento feminino e masculino na Itália contemporânea. O tom cômico de algumas cenas (a ginástica para mães de recém-nascidos, os discursos machistas de padres e conselheiras amorosas) é atenuado pela ausência de catarse: as cenas se sucedem, dialogam entre si, mas não constituem uma narrativa desenvolvendo-se rumo a uma conclusão específica. As esquetes são quase aleatórias, podendo se substituir umas às outras. Servem como exemplos evidentes de um estudo de caso.

A pedagogia destas cenas, estudadas não por representarem a média, e sim pelos casos mais gritantes, possui suas limitações enquanto cinema e enquanto discurso. Esteticamente, o filme adquire uma linearidade pouco interessante, na qual a novidade das primeiras cenas se perde diante da repetição de conteúdos muito semelhantes. No que diz respeito ao discurso, Normal jamais ultrapassa o estágio da constatação. A cineasta percebe a desigualdade entre o tratamento dos gêneros, ilustrada através de um afiado olhar de cronista, porém não investiga as causas, as consequências, as transformações ao longo das décadas, nem as especificidades locais do fenômeno. Por mais divertido ou curioso que seja o mosaico de machismos, ele se limita a uma percepção óbvia. Talvez a intenção tenha sido transmitir a falsa oposição homem/mulher de maneira puramente visual – afinal, o conservadorismo também se traduz num imaginário artístico pobre, porque repleto de restrições e tabus. Neste caso, no entanto, a diretora precisaria buscar meios alternativos, metafóricos, para representar a relação entre moral e estética.

Ora, o documentário se ressente de melhor acabamento de produção: diversas cenas são captadas com textura digital de baixa qualidade, captação deficiente de som e estranhos desfoques aparentemente criados na pós-produção. O teor caseiro da imagem poderia ser aproveitado para discutir, por exemplo, as imagens contemporâneas que os indivíduos fazem de si próprios, aprofundando a discussão sobre representação de gêneros. No entanto, as captações desiguais (a fraca cena da praça contra a bela cena do parque de diversões) transparecem a impressão de fragmentos coletados ao longo do tempo, dispondo de níveis desiguais de recursos, e justapostos apenas por sua função de exemplaridade. A cineasta questiona o decalque e as convenções da imagem sem se indagar quanto às próprias imagens que utiliza. Limitações à parte, o projeto constitui um pontapé inicial para uma discussão importante em tempos de ascensão das políticas conservadoras de repressão ao corpo e à sexualidade.

Filme visto no 27º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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