Noites Alienígenas

Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

Cidade e floresta se confundem numa forma de confronto. Não faltam resistência, esperança e juventude no universo da cultura periférica de Rio Branco, cidade amazônica onde impera uma espécie de realismo mágico.

Crítica

Do que é feito o cinema brasileiro? Diferentemente de nações menores em extensão territorial, o Brasil é um país diverso que contempla inúmeras realidades dentro de suas dimensões continentais. Por exemplo, o cinema feito no Rio Grande do Sul pode ser estranho ao realizado no Alagoas. E isso acontece porque as regiões têm históricos únicos, características culturais sui generis, sotaques característicos e influências artístico-culturais que as particularizam. Na verdade, inúmeras peculiaridades podem determinar as formas de representar as respectivas realidades dos povos. E se é complexa a missão de chegar à única ideia de “cinema brasileiro”, mais difícil é a missão de consumir essa diversidade, uma vez que durante muito tempo a centralização no eixo Rio/São Paulo obscureceu as regionalidades. Noites Alienígenas é o primeiro longa-metragem produzido no Acre, o que já incita a nossa curiosidade e revela a mencionada discrepância entre os estados com e sem tradição cinematográfica. No entanto, felizmente o grande vencedor do Festival de Gramado não vale somente o quanto pesa o exotismo atrelado à sua existência. Estamos diante de uma trama que combina vários elementos locais para falar de temas universais. E isso é muito bem-vindo, sobretudo porque nos auxilia a quebrar, nem que seja aos poucos, esse imaginário persistente do Brasil como um país restrito ao sudeste carioca e paulista.

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O protagonismo em Noites Alienígenas é pulverizado. Há múltiplas vozes disputando atenção. No entanto, Riva (Gabriel Knoxx) é o revelador, a figura que expõe o cenário com suas perambulações pela região empobrecida que o viu crescer e se tornar homem. Rimador e artista gráfico, ele tira seu sustento da distribuição de drogas ilícitas para o experiente Alê (Chico Diaz) – um tipo bicho-grilo que não parece interessado na dimensão industrial e econômica do tráfico, pois remanescente da época em que os jovens se drogavam para expandir os limites da mente. Riva tem amigos que cresceram junto com ele, meninos e meninas chamados à vida adulta e que enfrentam dificuldades para atender as altíssimas expectativas dela. O roteiro assinado por Camilo Cavalcanti, Rodolfo Minari e Sérgio de Carvalho contempla os vários personagens, flertando corajosamente com o perigo de tornar as coisas banais por conta do acúmulo de prismas. E o primeiro ponto positivo do filme é justamente ele conseguir ser sucinto e não cair na superficialidade. O enredo dá atenção a muitas pessoas e não as torna insignificantes, por mais que umas apareçam pouco. E isso está a serviço da intenção de construir um painel coletivo capaz de abraçar tantas vivências individuais. Aos poucos, ganhamos acesso à intimidade de uma região tristemente marcada por miserabilidade e desesperança, mas que pode guardar fagulhas de mistério.

A alternativa da criminalidade se apresentando a jovens periféricos, o martírio de mães que se sentem impotentes ao observar seus filhos enveredando pelo banditismo profissional, a religião servindo como área de escape, a recorrência do abandono paterno, tudo isso pode ser compreendido como algo universal. Ao elaborar bem esses assuntos, Sérgio de Carvalho aumenta a possibilidade de identificação de Noites Alienígenas, pois os tópicos citados estão infelizmente presentes em grande parte das periferias brasileiras. Mas também há atributos específicos que conferem ao filme um bem-vindo aspecto de regionalidade, de personalidade própria. A proximidade com a floresta Amazônica, o calvário do corpo indígena febril, os cenários repletos de traços específicos (palafitas, paredes carcomidas de empreendimentos abandonados, beira do rio, etc.) são combinados com as noções gerais. Outra coisa positiva é a naturalidade gerada pela encenação, a relação que a câmera estabelece com as pessoas inseridas nesse contexto que a elas soa como um prolongamento de suas existências. A direção se ocupa do ajuste fino na interação entre os inúmeros personagens dessa tragédia anunciada em tantas frentes, evitando, por exemplo, que diálogos e outros protocolos de convívio pareçam artificiais. Além disso, é um luxo bem aproveitado a presença em cena de um ator experiente como Chico Diaz.

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Há uma vivacidade como argamassa das relações humanas em Noites Alienígenas. Sergio de Carvalho não insiste na ideia de que os personagens recém-adultos (antes amigos) foram divididos por essa frustração individual dos sonhos juvenis imposta pela realidade perversa. Essa noção fica implícita. Já a indignação da parcela desiludida da sociedade acreana está nas batalhas de rimas, na poesia alternativa à reprodução da violência como válvula de escape. Quanto à parcela menos experiente do elenco, se destacam Gabriel Knoxx e Adanilo Reis. O primeiro, vivendo alguém que pende entre a arte e o banditismo. O segundo, na pele do indígena que carrega no corpo a inflamação literal (pelos efeitos da dependência química) e também simbólica (em virtude dos ataques às tradições milenares de seu povo, o originário). Uma das constantes sintomáticas do filme é a devastadora ausência paterna. Rivelino e Paulo cresceram sem pai e o segundo está perpetuando esse comportamento ao jogar nas costas de sua ex-namorada a responsabilidade de criar sozinha o seu menino. Seria leviano dizer que há algo de novo nessa produção que utiliza estratégias narrativas relativamente comuns para contar histórias infelizmente corriqueiras em áreas periféricas. No entanto, a atenção ao cenário incomum no cinema brasileiro e a veracidade que exala dos poros do longa-metragem é algo a ser celebrado.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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