Crítica


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Sinopse

Em meio a um ataque terrorista em Clermont-Ferrand, na França, os caminhos de um analista de sistema, uma prostituta de meia-idade e um jovem de origem árabe se cruzam. Juntos, eles motivam muito amor e muito ódio na vizinhança.

Crítica

Que relação pode existir entre um ataque terrorista cometido por três jovens árabes e a paixão obsessiva de um analista de sistemas por uma prostituta de meia-idade? Nesta comédia dramática, os dois elementos estão intimamente relacionados: o anúncio do crime é transmitido na televisão, enquanto o casal chega ao orgasmo. O diretor Alain Guiraudie sempre se divertiu com a aproximação de sujeitos rejeitados pelo sistema, em jornadas próximas do realismo fantástico. Dessa vez, ele dá um passo adiante em seu mergulho na fantasia. Cada personagem possui alguma característica fora do naturalismo: Isadora (Noémie Lvovsky) é uma prostituta conhecida pelos intensos gemidos de prazer, capazes de acordar a vizinhança. O marido ciumento sabe que ela se prostitui, e tenta afastar os conquistadores da amada esposa. Médéric (Jean-Charles Clichet) tem um comportamento recluso e poucos amigos, mas parece enlouquecer as mulheres. O vizinho islamofóbico não percebe a adesão da própria esposa à religião islâmica; e o outro, de vertente progressista, pega em armas para atirar em passantes árabes (para proteger outro garoto árabe, em sua perspectiva). Há figuras em negação, outras delirantes, e aquelas dotadas de capacidades incompreensíveis — eles pairam alguns níveis acima do real.

O humor generoso e farto se converte em ferramenta para abordar temas graves, longe de uma perspectiva informativa ou acusatória. O atentado logo será esquecido pelos protagonistas e pelo roteiro, cujo foco se encontra nas manifestações contemporâneas de medo, paranoia e dificuldade de lidar com as diferenças. Nunca descobriremos ao certo quem praticou os atos no centro da cidade, ou com quais motivações. Para o diretor, interessa sobretudo a presunção automática de que tenham sido homens radicalizados gritando "Allahu Akbar”. Assim, o verdadeiro tema de estudo não seriam as ideologias alheias, e sim a incorporação de discursos intolerantes e xenofóbicos na França. Embora transitem pela comédia, os personagens possuem a complexidade digna de um bom drama: Sélim (Iliès Kadri) está apartado de grupos radicais, porém pesquisa acerca do terrorismo na Internet (assim como o fazem os homens brancos da trama, ou seja, por curiosidade); Médéric deseja ajudar o próximo e proteger os mais fracos, ainda que se aproxime da vertente acusatória em diversas ocasiões. O título internacional, Nobody’s Hero, ou "Herói de Ninguém”, fornece uma descrição eficaz do homem médio, branco e heterossexual, que se considera um justiceiro digno de determinar quem pode perambular pelos corredores do prédio. A generosidade se confunde com arrogância.

Guiraudie encontra uma solução curiosa ao quiproquó sentimental. Aos poucos, o roteiro forma uma espécie de comunidade involuntária, costurada pelo afeto e pelo sexo entre indivíduos de grupos sociais distintos. O edifício residencial de Médéric se converte num microcosmo da França atual, onde todos os tipos vêm bater à porta do protagonista em busca de pedidos ou cobranças. As repetidas aparições de anônimos e colegas ao apartamento funciona como belo motor cômico, capaz de oferecer uma comunhão involuntária, tecida por laços de conveniência ao invés de uma súbita tomada de consciência. Os disfarces, trocas de identidade e reconfigurações de casais fazem com que o analista de sistemas, a prostituta, o jovem árabe, a atendente negra do hotel, o vizinho punitivista e o vizinho xenofóbico entrem e saiam do mesmo espaço, aliando-se aos adversários em instantes inesperados. Essas faíscas provocam brigas, mas também desejo: logo são confessados amores ocultos, ocupando vários espectros da sigla LGBTQ. Na impossibilidade de consumir o desejo, os pobres apaixonados propõem relacionamentos sem sexo, ou apenas um abraço. O fato de ser gay, de ser árabe, de ser uma mulher com véu, não deveria impedir de dormirmos juntos, certo? Neste sentido, a prostituta ocupa um espaço interessante, de viés materno. Ela acolhe a todos e percebe que seu trabalho ajuda as pessoas a terem mais confiança em si mesmas. 

O elenco abraça com vigor as possibilidades da fábula. Noémie Lvovsky, excelente atriz de comédia e habituada a interpretar prostitutas, empresta sua voz doce e a corporeidade sem vaidades à mulher benevolente, próxima de uma santa ou fada. Jean-Charles Clichet compõe esta figura central nas comédias populares francesas: o sujeito médio, nem belo e inteligente, nem rico e agradável. Ele possui pensamentos centristas e uma inteligência moderada. É justamente ao tipo comum que acontecem feitos inacreditáveis, como se o absurdo precisasse de uma âncora de naturalismo para soar plausível (em alguns projetos, a estrutura se inverte, com o protagonista maluco num mundo de pessoas sãs). Michel Masiero aplica com desenvoltura a mistura de brutalidade e carinho, face a um Iliès Kadri parte infantilizado, parte sedutor e rebelde. A santa heresia proposta pela narrativa se conclui com a trindade formada por pai fraco (Médéric), mãe prostituta (Isadora) e filho acusado de terrorismo (Sélim). Todos eles fazem sexo entre si, ou pelo menos o desejam. Os atores se entregam a estas recombinações com o timing veloz de uma peça de teatro popular, o que atenua o teor explicitamente político e impede que se reflita sobre os pormenores do roteiro.

Nestes pormenores, aliás, encontram-se as fraquezas do projeto. Conforme avança e propõe uma infinidade de reviravoltas, Nobody’s Hero se torna cada vez menos verossímil. Ao menos, a trama se encerra antes de se perder por completo. Entre excessos e licenças de lógica, Guiraudie imagina uma França dividida entre o medo e a solidariedade, ou seja, entre os valores republicanos pregados pelo “país dos direitos humanos”, e a onda crescente de intolerância e preconceito fomentada pelos grupos de extrema-direita. O texto ridiculariza igualmente os múltiplos setores: os violentos, os falsos salvadores brancos, os paranoicos, os otimistas sem razão. Alguns filmes políticos optam por defender um lado em detrimento do outro, apontando ao espectador quem amar, e quem odiar. Aqui, em contrapartida, apontam-se as falhas do sistema onde os cidadãos se tornaram incapazes de compreender o ponto de vista alheio. Na utopia libidinosa do cineasta, resolveríamos os nossos problemas com algumas cervejas e uma rodada de sexo entre amigos. Resta a metáfora de uma comunhão leve, baseada em afeto, propensa a superar julgamentos epidérmicos. “Faça a coisa certa”, prega o diretor, sem o furor de um Spike Lee, mas com a perspectiva jocosa de que, apenas rindo de nossas falhas trágicas, seremos capazes de perceber os erros de uma sociedade em ruínas.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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